Avançar para o conteúdo principal

A pele que grita – apresentação do livro O silêncio da Pele

 

Por Hirondina Joshua




É um prazer grande estar aqui para apresentar o livro de um poeta que mora na terra dos meus avós. Já no começo com essa afinidade. A mesma que desloca na pele quando sou tocada por alguma coisa.


Estava há dias a ler Simone de Beauvoir, numa frase que gostava de partilhar: “por vezes a palavra representa um modo mais acertado de se calar do que o silêncio.” Esta frase mostra os lados do silêncio: que é o de invocar (chamar em voz) e o chamar sem que essa voz se oiça. 

Acho interessante como esta ideia surge traduzida neste livro de poemas.

Otildo Justino Guido, veio com o silêncio da pele. Vejo a pele no poema do Otildo como sendo uma possibilidade de invocar, de trazer o recôndito para o inconsciente, como se fosse uma rota obrigatória, o fim das rotas.


O maior órgão do ser humano cientificamente conhecido como epiderme, do grego, em cima da pele, a camada mais superficial da pele, ora, quer dizer que existe a pele que não vemos, por estar coberta de uma outra pele. Ela remete a sentidos e variações, tudo aquilo que temos e nunca mexemos e quando tocamos surge existente. A visão depois da pele é o órgão mais poético. Aquele que lê de dentro para fora e vice-versa. O significado da emersão das coisas fora das coisas. 


O silêncio da pele.

Quer dizer que há um tempo em que a pele fala, se fala, há uma língua que lhe é permitida:

“Contador 

de alegorias do sol


o mesmo sol

que antes 

fora pedra e sonho”


A natureza surge muito forte aliada aos termos locais para aproximar a imagem poética do cotidiano ao nível mais transcendente, “kulungwana, chindumbana, xiphefo”.

Às vezes nos ensina a olhar uma semente, outras, uma pedra. 

O tema é diverso, pese embora haja dentro essa troca de linguagens. O poema ao régulo, o poema ao pai, o poema ao poeta Eduardo White, o poema sobre ou de amor (numa filosofia intrínseca), onde ele nos ensina a olhar para uma mulher como o sol, o astro que é.


Senti muito o tema campestre, o milho que deve brotar, não já da terra mas do recolhimento das estações dos homens, do fervor da vida que sobra para que o poema nasça mesmo que não se queira. O tema social também existe, reparem no poema Da infância e dos chivengulas, aqui também nota-se a mudança de linguagem lá onde nalguns poemas tínhamos uma voz menos narrativa. Este mesmo que nos aparece com palavras locais, ora por vezes dá-nos termos como protótipo, exiguidade. No poema ilusão o mais diverso de todos em termos de construção estilística, temos uma anáfora: 

“Ilusão de ser tudo nesta vida…

Ilusão de querer parecer sem ser…

Ilusão de escrever a estrofe sonhada…(…)”


Reparem igualmente nestas passagens:


Transcoávamos plásticos – voz na primeira pessoa do plural.

Na ruína tudo é nada – um poeta que está do lado de fora. 

Da distância tenho a ponte – voz na primeira pessoa do singular.


Mostra com isto a diversidade do dizer na pele do autor. 


Ora, se há silêncio da pele, quer dizer que há grito em quem lê. No sentido primário da palavra. Desocultar as coisas aparentes. 


Comentários

Mensagens populares deste blogue

Basta, Agualusa! - Ungulani Ba Ka Khosa

À  primeira perdoa-se, à  segunda tolera-se com alguma reticência , mas à  terceira, diz-se basta! E é  isso que digo ao Agualusa, escritor angolano que conheço  há mais de trinta anos. Sei, e já  tive oportunidade de o cumprimentar por lá, onde vive há anos num recanto bem idílico da Ilha de Moçambique; sei que tem escrito tranquilamente nessa nossa universalmente conhecida ilha; sei, e por lá passei (e fiquei desolado), que a trezentos metros da casa de pedra que hospeda Agualusa estendem-se os pobres e suburbanos bairros de macuti (cobertura das casas à base das folhas de palmeiras), com  crianças desnutridas, evidenciando carências  de gerações de desvalidos que nada beneficiaram com a independência de há 49 anos. Sei que essas pessoas carentes de tudo conhecem, nomeando, as poucas e influentes famílias moçambicanas que detém o lucrativo negócio das casas de pedra, mas deixam, na placitude dos dias, que os poderosos se banhem nas águas  do Índico, deleitando-se com “selfies” e enca

“Amor como caminho de crescimento” em “Amei para me amar”, de Nyeleti - PPL

  Amor é fogo que arde sem se ver, é ferida que dói, e não se sente; é um contentamento descontente, é dor que desatina sem doer.   É um não querer mais que bem-querer; é um andar solitário entre a gente; é nunca contentar-se de contente; é um cuidar que ganha em se perder.   É querer estar preso por vontade; é servir a quem vence, o vencedor; é ter com quem nos mata, lealdade. — Soneto de Luís Vaz de Camões (p.31)   Livro “Amei para me amar”, da escritora Nyeleti, é uma obra que transcende os limites da literatura, emergindo como um importante documento que mescla a literatura, a sociologia e a psicologia. Será um livro de auto-ajuda? Um depoimento? Não cabe a mim dizer, mas a sua estrutura em muito  me lembrou os Doze Passos para o tratamento do alcoolismo, criado por Bill Wilson pelo Dr. Bob S. Dividido em 13 capítulos temáticos, como “Todos somos falhos”, “Quando e como amamos demais”  e “Por que dou mais do que recebo?, o livro se revela uma janel

Uma vista às eleições gerais de 2024 - Ungulani Ba Ka Khosa

Para quem, como eu, tem acompanhado, ao longo de mais de quarenta anos, como professor e, acima de tudo, escritor, o percurso da Frelimo, em tanto que Frente de libertação de Moçambique e, subsequentemente, como Partido de orientação marxista,  desembocando em Partido sem estratégia ideológica, estas eleições não me  surpreenderam de todo. Ao acompanhar a leitura dos resultados feita pelo Presidente da Comissão Nacional de Eleições, veio-me à mente a durabilidade no poder de um outro partido do sul global, o PRI (partido revolucionário institucional), do México,  que esteve no poder entre 1929 e 2000. 71 anos no poder. Longo e asfixiante tempo! As críticas  que se faziam, nas sucessivas eleições, centravam-se na fraude eleitoral, na sucessiva repressão contra os eleitores, na sistemática violação dos princípios democráticos, na falta de lisura no trato da coisa pública. Tal e qual a nossa situação. A propósito, o grande Poeta e intelectual mexicano Octávio Paz, dizia, com a linguagem q