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Carta ao M. d'Castro

  Maxixe, Julho de 2025 Meu caro poeta Mafenane de Castro, ou Mandove, como entre os da churchen te nomeávamos com afecto e admiração. É com alegria, embora permeada de nostalgia, que respondo à tua carta, uma carta que me chegou como sopro de alma, como se as palavras tivessem atravessado os campos secos da ausência para florescer, de novo, entre as margens da memória e da poesia. Partiu-me o coração, confesso, o teu afastamento. Não por egoísmo, mas porque eras parte essencial da tessitura do nosso grupo. O teu silêncio não foi apenas ausência foi como se a melodia tivesse perdido uma das suas notas centrais. A pastoral, sem ti, parecia ofício sem incenso, missa sem liturgia. Tu eras, e ainda és, presença poética. Um daqueles raros seres que, antes de escrever poesia, a encarnam. Por isso, ainda que ausente, continuámos a sentir-te em tudo. Mas a vida segue mesmo quando não devia. E foi necessário aprender a normalizar o que não era, de modo algum, normal. Gostaria, n...

AS VIRTUDES DA GULA

Hoje é dia de festa, não me vai embaraçar a notificação remetida pelo mensageiro da madrugada, selada pelas acusações da consciência. Quero ver os arbustos estacados no solo das minhas gengivas a desabrocharem, satisfeitos com o trabalho dos moinhos que trituram os nacos de carne que enfenecem. Quero ver os meus beiços afogados na espuma da cevada, turbinada pelas invisíveis lombrigas estomacais do álcool, que trepam-me, enrolando as suas caudas nos galhos do meu cérebro. Prefiro esta compensa de iguarias, não me move, nem tão pouco, o pudor,  da penitência do mendigo que  arrasta os seus farrapos de esperança sobre o pedestre da penúria – à busca de nacos de pão. Não me interessa, vou debicar primeiro estes grãos de migalhas até que as botas fiquem desprovidas de solas de tanto lambidas a poeira. Hoje é dia de festa, serei a boca do rio que engole sapos, escarros e berros vomitados pelo esgoto, serei isto só, só isto sim senhor! Por esta noite para repelir as serpentes peçonh...

Jornalista Luís Nhachote apresenta o livro “Do Alto da Colina”

  A Gala-Gala Edições tem o gosto de anunciar o lançamento do livro “Do Alto da Colina, Todas as Crónicas 2003–2005”, do Jornalista Luís Nhachote. A obra congrega uma centena de crónicas literárias, originalmente veiculadas na sua aclamada coluna homónima no semanário SAVANA, entre o primeiro semestre de 2003 e Junho de 2005. Com 304 páginas, “Do Alto da Colina” emerge duas décadas após o silêncio da sua coluna, revelando um jornalista profundamente imerso nas inquietações do seu tempo, atento à sua gente e aos intrincados problemas que a afligiam. Através da sua escrita subtil e irónica, Nhachote debruça-se sobre temas cruciais como o emblemático julgamento do Caso BCM, o aceso debate em torno da alegada “morte da literatura”, as sombrias engrenagens do tráfico de drogas e a complexa influência da religião no tecido social moçambicano. Luís Nhachote, que nunca se considerou “escritor” no sentido estrito do termo, esclarece que a motivação para reunir estas crónicas ecoa o prop...

PROMISCUIDADE: UMA ÁVIDA MANEIRA DE EMPREENDER

A promiscuidade é a nova empresa em ascensão. Aliás, é a actual empresa licenciada e registrada, ostentando um robusto efectivo económico. Já vi fulanos e fulanas sem obesas bagagens acadêmicas, mas com as costas arqueadas, alardeando o peso das expectativas. No centro de recrutamento, não eram currículos que encharcavam suas vestes, mas chuvas de ilusão. Espantoso foi aquele processo de selecção, pois nenhum vagão do sinistro comboio ficou para trás! Apenas ajustaram as bainhas das volumosas saias, os decotes obsoletos, as pregas na pele dos seus currículos. Meu Deus, nunca foi tão fácil conseguir uma oportunidade de emprego! Da empresa Promiscuidade, um dia me abordou um funcionário impetuoso, atirando-me palavras obscenas como se fossem um convite dourado. A proposta? Uma espetacular vantagem moribunda: "a moralidade sexual, a ética social e o modernismo". Oxalá! Quis tanto sentir na pele os laivos do gemer, os arroubos e a penetração dessa grande engrenagem. Mas, infelizm...

O Silêncio que ecoa na Praça

A tensão política de Moçambique não é nova. Ela é uma sombra longa e fria que nunca vai embora. Um fardo pesado a ser carregado e que ninguém sabe como deixar para trás. Ela sufoca tanto quem está nas ruas quanto quem, atrás dos escudos, segura as armas.   E, Moçambique, chora em silêncio. Chora pelos seus mortos, pelos seus vivos, pelas suas dores invisíveis. Chora porque, agora, terra de ninguém, nela todos perderam algo — a jovem, o velho, o policial. Perderam porque esqueceram que, em algum lugar, são todos feitos do mesmo sangue, da mesma terra.   A praça é este espelho rachado. O caos das ruas reflecte os cacos de um país que já não sabe como se reerguer. O sol da tarde é cruel, lançando a sua luz contra os rostos marcados pela guerra, pela fome e pelo cansaço de gritar aos ouvidos que nunca ouvem.      Os cartazes balançam como bandeiras de um povo à deriva. "Queremos justiça!", dizem uns, mas que justiça cabe neste lugar onde a voz se perde ant...

Sua Excelência, Senhora Penitenciária

Excelência, rogo-lhe que leia atentamente esta carta. Há reclusos incriminados no seu gabinete. Veja bem, há reclusos dentro das suas gavetas e armários. Se não for por engano propositado, que sejam enviados para a jaula juntamente com aqueles processos dos condenados que perderam o crachá da caução e os tantos perdões do santo das misericórdias. Mas, por favor, não os atire na cova dos leões, como de costume.  Rogo-lhe, não os atire ao circo de Nero para serem dilacerados pelas feras armadas. Quiçá, são provedores, pais e filhos, Excelência!      Excelência, há reclusos dentro das suas gavetas  e armários. Merecem ser libertados desse purgatório para serem esmagados pelo martelo da justiça dos tribunais ou, pelo menos, verem os seus casos analisados por uma equipa de magistrados. São reclusos-chave, conhecem todos os meandros daqueles malandros que nos trepam às costas como gala-galas e salamandras nas paredes. Aquele...

A ESTRADA VERMELHA

Todas as estradas são feitas de alcatrão e alguns litros consideráveis de sangue. É necessário jorrar sangue, sangue e mais sangue para trilhar a estrada da vida, que desagua no mar de fantasmas: a morte. É por isso que os artesãos desta existência tecem, todos os dias, esteiras com fios de lágrimas.   As estradas de alcatrão ferem-nos a pele com a sua fúria, desenhando-nos tatuagens de traumas e cicatrizes como as que infestam a vida do povo com chicotadas de chacinas, fome e miséria, paridas pelos senhores governantes.   Nenhuma estrada de alcatrão é leve, muito menos a EN1. A EN1 que, segundos antes das 19 horas do dia 28 de Dezembro de 2024, em Mapinhane, podia ao menos ter sussurrado ao ouvido daquele jovem motorista para nunca estacionar no acostamento à espera do Anjo da Morte. Assim, talvez não se tornasse refeição bem confeccionada: aquele molho de tripas acompanhado por uma papa vermelha, com sobremesa de pernas e orelhas amputadas, servidas sobre a mesa de...

Crónica de uma feira de livro com alface - Alerto Bia

Aos meus amigos, G.J.G.I Para mim, uma feira de livro é um espaço para as novas propostas editoriais se deixarem cirandar pelos olhos do público, se deixarem acariciar às pressas em todas as mãos rugosas e macias. Os expositores têm este defeito quase natural de expor inúmeros exemplares do mesmo livro pelo público; em condições desastrosas como nesta última feira a que tomei parte onde havia um stand de alface e tubérculos (a mandioca, apesar da fome, foi saborosa) e o mestre da cerimónia disse: bem-vindo a feira agrícola, antes de receber a correção dos ouvidos para dizer feira de livro sim, era qualquer coisa  de feira mista, pareceu-me. Assim que se calava o mestre da cerimónia, o gestor do som explodia o silêncio com uma música de estremecer o chão, e agitava a cabeça como um espantalho mágico, e os dedos como um trapezista faziam gincanas nas bobinas da mesa do som  (uma feira de livro assim com alface e ruído da música jamais vista) precisamos repensar as nossas feiras ...