por: TAIMO, E. (evaristotaimo@gmail.com)
O projecto Tindzila realizou uma
conversa virtual, há dias, subordinada ao tema “Poesia e Prosa: por que
Moçambique produz mais poetas e poucos prosadores?”. Foi uma comunicação
bastante aderida e interessante, cujo orador foi o crítico literário, Gilberto
Matusse, que vale a pena abordar. Na comunicação, entre outros aspectos, o
locutor deixou ficar o seu posicionamento sobre a literatura moçambicana, a sua
crítica sobre o papel actual da escola e de professores no incentivo à leitura
e discutiu, sobretudo, algumas questões relativas à poesia e prosa
moçambicanas, o norte daquele encontro.
Quem é Gilberto Matusse?
É Professor Auxiliar no Departamento
de Linguística e Literatura da Faculdade de Letras e Ciências Sociais da
Universidade Eduardo Mondlane. É um notável pesquisador da Literatura
Moçambicana. Como docente, já leccionou disciplinas como Introdução aos Estudos
Literários, Literatura Moçambicana, Teoria da Literatura, Língua Portuguesa,
Semiótica e Retórica. Actualmente, ensina Literatura Geral Comparada I,
Literatura Geral Comparada II e Teoria da Literatura, além de Introdução aos
Estudos Literários. Foi, igualmente, docente convidado em alguns países, como
África do Sul e França e examinador externo da secção de Português da
Universidade de Harare, em Zimbábwè. Já participou em vários projectos de
investigação. Foi coordenador da “Gazeta de Artes e Letras” da Revista Tempo
(1986 – 1988). Já integrou júris de concursos e prémios literários diversos,
nacionais e internacionais. A nível nacional, por exemplo, o destaque pode ir
para o Prémio Literário José Craveirinha, de que foi presidente do júri, cujo
vencedor da edição de 2018 foi o escritor moçambicano Ungulani Ba Ka Khosa.
Crítico literário e excelente
orador, Gilberto Matusse já fez parte de vários eventos científicos e tem
várias publicações sobre literatura moçambicana a destacar, por exemplo, ‘A
Construção da
Imagem de Moçambicanidade em José
Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa’. Actualmente, para além de
professor de Literatura na Universidade Eduardo Mondlane, desempenha as funções
de vice-presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa.
Sobre Literatura Moçambicana
Questionado pelo auditório, sob a
moderação de João Baptista, se poderíamos considerar existir ou não uma
literatura moçambicana, o Professor Gilberto Matusse disse que a resposta à
essa questão era, em si, “extremamente complexa” e que, até, nos levaria a
analisar a própria regulação do sistema literário de Moçambique, que lhe é
exterior. “A questão é extremamente complexa porque, primeiro, teríamos de ir
ao próprio conceito de literatura. E, quando formos para aí, vamos notar que se
calhar há determinados componentes desse sistema que ainda não estão plenamente
estabelecidos. Eu, em alguns anos, escrevi um prefácio para o livro de três
colegas meus, nomeadamente, Albino Macuácua, Lucílio Manjate e Osvaldo das
Neves. O título do livro era
‘Literatura Moçambicana: da ameaça
do esquecimento à urgência do resgate’. Nele, colocava-se a questão sobre a
existência ou não da literatura moçambicana num sentido em que julgo que uma
das componentes do sistema literário de Moçambique ainda não está devidamente
estabelecida e por isso a regulação do próprio sistema, às vezes, vem de fora.
Se calhar, uma das formas de ver qual é a minha opinião a respeito deste
assunto é ler-se este prefácio que eu escrevi”, recomendou.
Associado a isso, admitindo não fugir de dar sua resposta, Matusse disse haver a sua sensibilidade em relação aos traços da literatura moçambicana em ‘A Construção da Imagem de Moçambicanidade em José Craveirinha, Mia Couto e Ungulani Ba ka Cossa’. Só para clarificar, segundo o ele, a literatura é um fingimento, termo baseado na visão de Fernando Pessoa. “O poeta é um fingidor, segundo Fernando Pessoa. Nesse meu livro, procuro apresentar algumas das estratégias que estes três autores utilizam para criar este efeito de moçambicanidade, para fingila”, referiu.
Sobre leitura: uma deixa às escolas e professores
“Quanto ao facto de as pessoas
preferirem ler poesia à prosa, posso estar desatento mas me lembro que, durante
muito tempo – quando a Associação dos Escritores Moçambicanos era a única
editora dos textos literários – quando o livro era de poesia, a tiragem era de
três mil exemplares, mas, quando era de prosa, a tiragem era de cinco mil
exemplares, o que reflectia a existência de mais leitores de prosa do que de
poesia”, lembrou.
“Se eu disse que há uma tendência de
toda a gente achar que pode escrever poesia, em contrapartida, é mais fácil e
menos exigente a leitura da prosa do que a da poesia. Por outro lado, existe um
outro fenómeno bastante presente na nossa juventude que é a preguiça de
leitura”, denunciou.
A propósito dessa preguiça, para o
vice-presidente do Fundo Bibliográfico de Língua Portuguesa, é preciso que haja
cultura de leitura, que se promova a disponibilidade de livros à sociedade,
mas, sobretudo, que a escola cumpra o seu papel de educar literariamente os
jovens. Além de mais, Gilberto Matusse considera que muitos professores não estão
interessados pela leitura, pelo que não têm gosto por ela e torna-lhes difícil
incuti-lo aos seus alunos.
“Parece-me que a escola não está a cumprir esse papel, por duas razões: a primeira é que o próprio programa escolar não está preparado para isso; quanto à segunda, parece-me que os próprios professores foram formados já neste contexto em que se vai desprezando cada vez mais a literatura. Parece-me, também, que eles não estejam interessados por esta questão de literatura e dificilmente podem incentivar os seus alunos. Então, se aqueles que têm a responsabilidade de promover a leitura e o gosto pela literatura não o fazem, as grandes obras sejam elas de poesia ou de prosa vão morrer ou cair no esquecimento.”
Poesia e Prosa: por que em Moçambique há mais poetas do que prosadores?”
Sobre a pergunta acima, a
comunicação de Gilberto Matusse destacou, primeiro, a necessidade de não se
assumir a poesia e prosa como géneros literários. Segundo explicou, “é
importante dizer que poesia e prosa não são totalmente géneros literários. O
que acontece é que há géneros literários que estão em prosa e outros são
poéticos. Prosa e poesia nem sequer são modos literários. O que acontece,
também, é que há modos literários que se exprimem preferencialmente através da
prosa e outros que se exprimem preferencialmente através da poesia. Não são
géneros, de facto. Nós encontramos muita poesia, portanto, textos escritos em
versos que são narrativos, apesar de que a narrativa é normalmente apresentada
em prosa, mas há muita narrativa em versos. Pensemos nas epopeias, pensemos até
em poemas de autores como José Craveirinha que são fortemente narrativizados.
Existe, também, aquilo que alguns chamam de prosa lírica ou prosa poética.
Pensemos, por exemplo, em Eduardo Waite que tem muitos textos de prosa lírica.
Portanto, prosa e poesia não são propriamente géneros literários, mas o que
acontece é que há, portanto e como expliquei, géneros que se exprimem em poesia
e outros em prosa.”
Essa foi apenas uma abordagem que
Matusse usou visando melhor inserir o auditório na súmula da conversa. Daí, o
orador foi, devagar, penetrando no âmago do tema atacando, mesmo que de forma
subjectiva, o porquê de no contexto moçambicano haver mais poetas do que
prosadores. Para o efeito, bastou-lhe uma contextualização histórica à qual
associou suas próprias especulações em relação à questão do fundo. “O que
constato – e que me parece ser um fenómeno de tendência universal – é que a
poesia costuma aparecer primeiro e só depois aparece a prosa. É a minha especulação.
Isto não tem qualquer confirmação nem fundamentos sólidos, mas me parece que a
poesia é uma forma mais intrínseca ao próprio Homem. Nos homens primitivos,
havia formas rituais que faziam parte dos seus actos diários, das adorações aos
deuses, e parece-me serem formas muito próximas da poesia e, por outro lado, a
poesia está mais ligada à expressão do eu, à expressão de sentimentos e, por
isso mesmo, parece-me ser mais ligada à natureza humana”, explicou.
Este carácter mais natural da
poesia, acrescenta Matusse, de natural por ser a forma de expressão do Homem –
porque, de facto, a forma de comunicação mais natural, segundo ele, é a prosa,
mas, porque a poesia exprime sentimentos, – “parece-me ser a expressão de algo
que é espontâneo. Então, parece-me que isto pode estar relacionado com este
facto de a poesia aparecer primeiro como arte, como forma de arte, enquanto a
prosa, por ser muito prática, parece estar distante da arte e provavelmente por
isso só mais tarde é que o homem começa a fazer da prosa também uma forma de
arte. Mas isso é só uma especulação minha e espero que desta conversa eu possa
ser corrigido ou confirmado, e estamos aqui para isso”, apontou.
No entendimento deste investigador,
é mais fácil publicar poemas em jornais do que publicar textos em prosa, que
ocupam muito espaço. “Não admirem que o primeiro livro editado em Moçambique,
pelo menos é essa a indicação que eu encontrei, é de poemas. Acho que o título
é Sons Orientais, no entanto, se os periódicos arrumam melhor a poesia, também
os periódicos são a forja dos prosadores”, disse.
Segundo Matusse, os primeiros
prosadores moçambicanos são jornalistas e poetas. “Estamos a falar, por
exemplo, dos Albasines, pelo que os periódicos vêm acomodar uma tradição de
poesia que já existia mas, ao mesmo tempo, permitem o desenvolvimento da
escrita em prosa, porque o jornalista, na sua actividade do dia-a-dia, escreve
prosa, obviamente, e então estará melhor habilitado a escrever também textos
literários em prosa e é o que encontramos”, comentou.
Aliás, Gilberto Matusse explicou que
as primeiras manifestações literárias moçambicanas, mesmo as de carácter
reivindicativo ou político, eram poéticas. “Estamos a falar, por exemplo, de
produções de Noémia de Sousa e de José Craveirinha, e isto é típico das
literaturas africanas de expressão portuguesa. Portanto, estas questões de
natureza social e de compromisso cívico e político também estiveram presentes
na poesia dos escritores mencionados, até nos de Cabo Verde, Angola, etc.”
Esse enquadramento histórico é
crucial para a discussão e resposta à questão norteadora da comunicação. Além
de apresentar elementos que nos ajudam a entender o porquê do fenómeno em
Moçambique, faz uma alusão à anterioridade cronológica da oralidade em relação
à escrita, que nos remete, segundo a óptica de Gilberto Matusse, à
anterioridade da poesia em relação à prosa, e esta relação cronológica, por sua
vez, pode ser a razão e também um elemento fundamental para determinar a
diferença quantitativa entre elas (poesia e prosa), no caso da literatura
moçambicana.
Mas, para trazer mais subsídios à
conversa, Matusse quis recorrer também à sua própria experiência como quem já
integrou o júri de vários concursos literários, muito particularmente de concursos
para iniciantes. “Neles, pude perceber que o desequilíbrio entre a quantidade
de poetas e prosadores vai-se reduzindo ao longo do tempo. Tenho visto, por
exemplo, nestes concursos, situações em que o número de concorrentes com
géneros em prosa, normalmente em contos e romances, é sempre inferior ao dos
concorrentes em poesia.”
Além disso, acrescenta o Professor,
existem certas exigências impostas nos concursos literários: “por exemplo, o
prémio TDM exigia um mínimo de páginas para poesia e para prosa, e foram
aparecendo mais pessoas com poesias do que com prosas. E eu julgo que, para
muitos, é mais fácil estender o número de páginas adicionando mais três ou
quatro poesias, do que aumentá-las, produzindo textos em prosa com vista a
satisfazer os requisitos. Muitos consideram que é mais fácil escrever para um
concurso em versos do que escrever, por exemplo, em romance.”
A título exemplificativo, o
moderador da conversa, João Baptista, disse que a Fundação Fernando Leite Couto
lançou, em 2017, um concurso literário somente para cidadãos de nacionalidade
moçambicana, dedicado anualmente e de forma intercalada à poesia e à prosa.
Sucede, no entanto, que, em 2017, ano escolhido para a submissão de poesias à
fundação, “a instituição recebeu inúmeras candidaturas. Em contrapartida, no
ano seguinte, dedicado à prosa, a mesma fundação recebeu um número insuficiente
de candidaturas, fazendo com que o concurso da edição de 2018 fosse cancelado.
Outrossim, a Alcance Editores, segundo JB, tem promovido um concurso literário
e recebe 70% de trabalhos em poesia, 20% em prosa e 10% em conto infantil”,
elucidou.
Entretanto, a razão para o
desiquilíbrio entre a produção de poesias e de prosas em Moçambique, segundo
Matusse, limita-se apenas ao nível numérico, quantitativo, e não se desdobra à
qualidade.
“Acho que a razão disso pode ser
aquilo que eu expus: o que se constata é que toda a gente tende a fazer versos,
principalmente na fase de iniciação literária. Portanto, esta tendência para
poesia na fase incipiente dos poetas, que é grande, é que mais tarde os leva a
terem a inclinação para a escrita, digamos, séria de poesias. Mas esse
desiquilíbrio só ocorre ao nível da quantidade porque, em termos de qualidade,
há equilíbrio. Em termo de números, há mais poetas, há mais pessoas a
escreverem poesia do que a escrever prosa, em Moçambique. E isso é notável nos
concursos, inclusive nos da Fundação Fernando Leite Couto”, justificou.
Se Moçambique pode, ainda, ser
considerado um país de poetas? – perguntou Gilberto Matusse reagindo a um
comentário dos espectadores, enquanto adentrava na sumarização da sua
comunicação. O crítico literário admitiu que sim, mas considerou ser, também,
um país de bons prosadores razão pela qual frisou que, hoje em dia, a expressão
‘Moçambique é um país de poetas’ já não pode ter o sentido que tinha ontem.
“Isso é já um hábito. Mas eu posso aqui trazer alguns elementos que levaram a
que se considerasse isso: em primeiro lugar, falava-se de Moçambique como um
país de poetas porque tinha muito mais poetas do que prosadores, até certa
altura. Como eu disse, isso reduziu. Em segundo lugar, as suas grandes
referências eram maioritariamente poetas. De facto, o país tem excelentes
poetas, mas, hoje em dia, o país também tem excelentes prosadores. Portanto, em
Moçambique há equilíbrio quanto à qualidade entre poetas e prosadores. Mas
ficou a expressão: país de poetas. Mas é também um país de grandes
prosadores.”
Por esse motivo e segundo Gilberto Matusse, “não fica mal dizer país de poetas, mas essa expressão já não tem o mesmo sentido que tinha no tempo em que se originou, onde os grandes nomes pelos quais o país se apresentava lá fora eram poetas.” Gilberto Matusse falava num encontro virtual realizado pelo Tindzila, uma iniciativa cultural sedeada em Inharrime, província de Inhambane, sem fins lucrativos, que iniciou suas actividades em 2019, visando à dinamização da Literatura daquele ponto de Moçambique e do mundo afora.
Jornal Generus. 01.03.2021. https://chat.whatsapp.com/E9tSbChAVtE0iu9QVR5Jd
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