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Mudando de assunto

 




Por: Elísio Macamo

Fico contente quando um africano brilha. Abdulrazak Gurnah acaba de brilhar com a conquista do Prémio Nobel de Literatura. A minha alegria tem pouco a ver com a solidariedade “cultural”. Tem muito a ver com a impressão que causa em mim ver alguém que se formou como pessoa em condições difíceis a triunfar. É isto que me dá alegria no sucesso de africanos. As condições em que o nosso continente se constituiu e, portanto, as condições em que cada um de nós se forma como pessoa são, dum modo geral, hostis. O sucesso dum africano é, para mim, sempre a celebração da condição humana, daquilo que é possível ser, apesar de tudo.


Não escondo o incômodo que os Prémios Nobel de Paz e Literatura para os africanos me criam, sobretudo os da Paz. Apesar de eles documentarem a resiliência africana, eles documentam também tudo o que está errado neste mundo. Não é que não haja africanos capazes de serem bons físicos, economistas, médicos, biólogos, etc. O facto de estarem ausentes dessas listas diz muito sobre a crueldade da história. Nesse sentido, os prémios de literatura e da paz chegam a ser, para mim, a manifestação da nossa marginalidade. Ganhamos os prémios da paz porque somos politicamente instáveis – e ninguém procura as razões na história. Ganhamos os da literatura porque, bom, escrever não exige muitos recursos e, ainda por cima, escrevemos nas línguas que os outros entendem. 


Eu tento imaginar como seria a literatura de Wole Soyinka e, já agora, de Abdulrazak Gurnah, se ao invés de escreverem em inglês, escrevessem em ioruba ou ki-swahili, mas não só. Que fossem lidos nessas línguas pelo comité lá do Prémio Nobel. Isto é, o prémio não é necessariamente a celebração da nossa criatividade e resiliência. É também a celebração da nossa inscrição num registo alheio. Somos inteligíveis quando somos inteligíveis para eles. Isso faz-me espécie. Por exemplo, devido às críticas que tem havido sobre o facto de mulheres e outras regiões do mundo não estarem a receber a devida atenção desse comité, o comité diz que tem estado a envidar esforços para corrigir isso. Mas acrescenta: o importante é que se respeitem os critérios de qualidade da literatura.


Parece fazer sentido. Mas não faz. Um prémio tão importante como este não pode ter como critério a satisfação dum critério pré-estabelecido, pois essa é a forma mais fácil de garantir que outros não sejam considerados. Se o Comité quer realmente mudar alguma coisa, ele tem que estar aberto a manifestações literárias que explodem o cânone, isto é que tragam novos elementos à própria ideia de literatura. Fora disso, é mais do mesmo. Não fizeram isso com Bob Dylan, uma das atribuições mais ridículas e arrogantes de que há memória? Quantos cantores do mundo eles ouviram? Alguma vez alguém pegou na música do nosso Xidiminguana para ver o que ele faz com a língua, como conta histórias e, por via disso, como as suas músicas expandem o nosso imaginário? Já agora, compararam Dylan com Chico Buarque ou com Zeca Afonso? Ou partiram simplesmente do princípio de que ele, como americano, fala do interior do cânone?


Li, estupefacto, a justificação para a atribuição do prémio ao tanzaniano: “Pela sua penetração intransigente e e cheia de compaixao dos efeitos do colonialismo e do destino do refugiado no abismo entre culturas e continentes”. São três coisas que me incomodam aqui. A primeira é a transformação do escritor num etnógrafo da sua cultura. Não é que isso não se faça. Mas isso limita a relevância da sua obra ao seu povo. Isto é, Gurnah não recupera a experiência humana, mas sim a experiência local. Não estou a ser mesquinho. A documentação da experiência colonial e do refúgio só é digna de celebração se ela nos disser algo maior sobre a nossa humanidade comum. Já, agora, o que estes relatos dizem aos membros do comité Nobel sobre os valores da cultura europeia que estiveram por detrás da humilhação do povo tanzaniano? 


A segunda coisa é esta “inocência branca” – estou a usar um conceito da antropóloga holandesa, Gloria Wekker. O pessoal lá do Comité não sabe o que foi o colonialismo? Não leu o que os historiadores escreveram? Precisava de ouvir isso dum escritor, ou há algo que o escritor está a trazer que transcende o quadro da historiografia e nos convida para outros tipos de reflexão? Porque são importantes os relatos dos horrores do colonialismo? Por serem documentos duma época, ou por nos convidarem a rever os nossos próprios valores? Os europeus estão a fazer isso? É nestes momentos que penso na profundidade duma afirmação de Toni Morrisson quando ela se indagava como um europeu deve se sentir sabendo tudo o que foi feito em nome da sua cultura? Não é possível atribuir um prémio destes a um africano sem responder a essa pergunta.


A terceira coisa está ligada a esta segunda. É a recusa de aprender. Ontem, participei numa mesa redonda organizada no âmbito do Congresso de História da Alemanha que está a acontecer esta semana em Munique. O tema era a restituição. Partilhei a mesa com três historiadores (e museólogos) alemães. O tema não é realmente minha praça, ainda que seja sempre convidado a me pronunciar. O que eu disse foi essencialmente que a restituição em si não tem nenhum valor se não for acompanhada, na Europa, por um debate amplo sobre como foi possível que uma cultura que proclama o tipo de valores que definem o que é europeu tivesse feito isso. Não se trata de exigir penitência. Trata-se de convidar as pessoas a deixarem de fingir que nasceram com os valores universais humanistas na barriga. Eu disse que se esta discussão sobre a restituição não levar à revisão de currículos no ensino primário e secundário, então nada feito.


Igualmente, sempre que uma instituição europeia com pretensão universal decide acomodar alguém de fora ela não está apenas a ser “justa”. Ela interpela-se eticamente. Um prémio Nobel atribuído a um africano é sempre um ensejo para se reflectir porque tão poucos, porque nestes termos, o que isto diz sobre o sistema de valores na base da nossa auto-percepção como portadores de valores, etc. No limite, um prémio destes é um repto que quem o atribui lança a si próprio. 


Nessa mesa-redonda disse também que a restituição coloca uma grande responsabilidade nos ombros dos africanos. Os objectos voltam transformados. Não são o que foram quando foram roubados. Eles voltam como uma espécie de representação dum processo pelo qual os africanos eles próprios passaram, não importa se se deram ou não conta. Eles perderam a sua inocência. Esses objectos não representam mais o significado original, mas sim a relação com os europeus e, em consequência disso, a necessidade de auto-reinvenção que se impõe a eles. 


Essa reinvenção não pode consistir na recuperação dum sentido original, mas sim na interpretação dessa experiência histórica com o fim de criar um novo sentido de existência. Esse é o desafio que os africanos continuam a ignorar por razões compreensíveis, naturalmente, mas que limitam bastante a sua capacidade de tomar conta da sua vida. Parte dos nativismos exacerbados – aos quais os pós-colonialismos e decolonialismo infelizmente não escapam – impedem-nos, a meu ver, de lidar de forma adulta e responsável com a história horrível que nos fez como pessoas.


É isto que explica a minha ambivalência em relação a estes prémios. Por um lado, eles são o reconhecimento das nossas capacidades – mas não necessariamente da nossa humanidade – e por outro lado eles revelam até que ponto vivemos num mundo que não é necessariamente o nosso mundo. Não sei se seria desejável ter esse mundo nosso, mas também não me parece absolutamente necessário. O que me parece necessário é a apropriação deste mundo. 


Isso faz-se, por um lado, continuando a exigir aos europeus que sempre que se mostrem dispostos a demonstrar reconhecimento não nos confinem às margens de realizações que nos confirmam como bons representantes de nós próprios, e não da condição humana, e, por outro, trabalhando tudo o que há de bom nos valores traídos pelos europeus para produzir novos conceitos de estar no mundo tendo como base o que no nosso sofrimento – e resistência – há de resiliência humana.


Só nessas condições é que estes Prémios podem fazer algum sentido para mim. Por enquanto, embora motivo de orgulho, eles não passam de gestos simbólicos que os europeus usam para não se interpelarem de forma profunda como, aliás, o deviam ter feito aquando da descolonização. Nessa altura também eles perderam a oportunidade de fazer esse exercício de introspecção e usaram – como, aliás, ainda continuam – o auxílio ao desenvolvimento como forma de expiar esses pecados que não querem confessar. Hoje existe o sério risco de usarem estes prémios simbólicos – mas também a “restituição” – para se protegerem da introspecção.

 

E nós como sempre vamos celebrar a sua generosidade...




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