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Um casal só torna-se pobre quando a mulher for burra, texto de Luís Nhazilo


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Prima, não é a primeira  vez que te digo algo similar a isto: um casal só torna-se pobre quando a mulher for burra. Repare como a minha vida está, há por detrás disto, uma maratona de sofrimentos, uma gasolina de esforços que eu e o meu marido ingerimos e, talvez, litros de sangue de alguém que foram entornados; sou casada há vinte três anos com o Lourenço, o meu casamento, não foi dos melhores, confesso; na verdade, tudo porque obrigaram o meu marido a fazê-lo. Podes sentar porque, não posso te mentir, a história é longa. Na época, o meu marido vendia Tapioca no mercadinho, ali ao lado da escola de bunhiça, na Matola, isso em noventa e sete, bem antes de ser segurança nas machambas do primeiro de Maio, aliás, mesmo essa oportunidade que surgiu para que fosse trabalhar na MOZAL como serralheiro ajudante, que recebia quinzenalmente, haaaa, é de hoje. Eu sempre fui proibida de sair de casa, só de espreitar a rua era um pecado maior, que, se dependesse deles, Jesus O Cristo morreria centena de vezes para que eu ganhasse um simples perdão; mana, escrava só?, isso é pouco, parecia uma refugiada na casa dos meus próprios pais. Era vigiada terrivelmente, só de ser mandada para no vizinho pedir lume, quando voltava, seguia um inquérito de rasgar a garganta, uma condenação sem medida. Foram vinte dois anos de prisão, prima. O meu pai não era tão monstro assim, que agora descanse em paz, a minha mãe é que tinha esse espírito...(bocejo), vivia "analfabetadamente" desajeitada, sem saber o que era namorar, nem tinha ouvido falar de relações sexuais, sobretudo, de como evitar as doenças; estava condenada a ficar em casa e associar-me à loucuras dos meus irmãos, o Júlio, esse médico que esteve aqui ontem, e o falecido Fernando, que Deus o tenha; contudo, a trama, querida, começa quando me mandam para comprar pãezinhos na vila de mathlemele, pode não acreditar, mas eu tinha a liberdade na palma da minha mão, foi aí que conheci esse louco de Lourenço...(risos)... eu já estava prestes a completar vinte três anos. Depois de ter vivido trancada naquele mundo, pequeno demais para mim, quando abri a portinhola, roçava as oportunidades como se fosse meu último dia de vida; talvez não acredite, só tenho terceira classe, até, graças a Deus que era vizinha da escola e o amigo do meu pai, senhor Caetano, que hoje está nas "Europas", facilitou-me a vida;  a minha mãe sempre falava que a mulher tem tarefa de cuidar do marido, ir a machamba e dormir, porque escola é perda de tempo. Não se  ocupe, estou calma, não estou a chorar, é necessário usar essas lágrimas para purificar o mal na alma, não foi fácil.



O Lourenço me tomou em rajada, diga-se, pois, fui simples demais até para dar terror. Levou-me para casa do irmão e nos possuímos à beça, isso no mesmo dia, estamos a rir tristezas, oh... quando regressei a casa, sem pãezinhos, haaaa, era noite, já estava liberta, prima, nem liguei para fúria dos meus pais que, no dia seguinte, me perscrutaram de norte à sul de mim, mas nada disse; um mês depois já estava a apresentar sintomas de gravidez do Orlandinho, a minha mãe ficou confusa tanto que mereci uma horrível chapada que me custara  dois dentes; ganhei maldições dela, cuspiu na minha cara, disse com todas letras que sou estúpida, e, ela, a tentar entender como foi possível, nem mesmo a Maria da bíblia há quem duvide da sua virgindade; levei os meus pais até ao Lourenço, foram muitos dedos a indicarem tamanha humilhação, dá vergonha, sabe...disseram ao meu marido que traziam a sua esposa  e que estava grávida, sombras, ele todo estupefacto sem o que dizer; no dia seguinte, eu era baptizada à pancadaria. O Lourenço que você conhece é de hoje; deixou de vender Tapioca, acabou sendo segurança no primeiro de Maio.



Quando dei a luz o Orlandinho,  um ano e sete meses depois, a minha sogra, sujeitou-me a carpir nas antigas machambas de tchumene para que se comesse lá em casa, ela só acordava, diába sem dó, ficava à espera de mim; cultivava  para que em troca me dessem arroz, mandioca, farinha e alimentasse o meu filho; prima, com uma criança no colo a chorar, com enxada na mão a cultivar para, também, sustentar a minha sogra e o meu próprio marido que  só trabalhava para estar em suas patuscadas ; por inacreditável que possa imaginar, ele chegava ébrio, pouco se importava em saber de onde é que vinha a comida, era só comer e dormir, acordar e deixar trajes sórdidos que sujara com suas  amantes, Inda por cima, com cinto na mão a obrigar-me a lavar. Isso já não me dói; nem tempo para o filho, mana. Ele queria que eu abortasse a gravidez, mas não aceitei, mesmo me desancando, não aceitei. Passou a trabalhar na MOZAL em dois mil, sabe, prima, nem terreno tínhamos, seu irmão mais velho, o Antônio, não tinha mulher, no tempo, fora um péssimo irmão, deixar seu irmão mais novo se perder, é um cúmulo; eu mesmo sem opinião nele, fui ousada, disse que por mais que não parasse de se divertir, que comprasse terreno, porque um dia, não se sabe! No mesmo ano já tinha comprado e morávamos na casa de caniço em Bedene, era tudo trivial: sevícia diária, o Orlandinho  que quase sumia a alma de tanto chorar, sem fraldas, eu tive que secar duas tiras de capulana que a vovó Elina de lá onde fazia os cultivos para ganhar o que comer me ofereceu.



Um  dia, ulterior uma denúncia de algum vizinho, que disse aos meus pais que estavam acabando com minha existência, eu, Cármen Miranda, fui buscada à força pelos meus pais, tamanha brutalidade num só ser, nem tempo para um abraço ao meu filho, patavina; já por lá, tornei-me uma vendedora ambulante, cada dia, infalivelmente, vinha aqui ver o meu filho, deixar o que comer, então, prima, em dois mil e três, foi no tempo que o Lourenço perdera o emprego na MOZAL que teve a obrigatoriedade da voltar comigo, porém, com condição de jamais colocar sua mão sobre mim nem por engano , senão pelo meu consentimento. As bênçãos vieram como pássaros; hoje temos o Sidônio e a Idalina, meus filhos... encetou com biscates nos CFM que terminou com um contrato indeterminado, casamos, mas antes, tinha se repudiado do cigarro, da bebida; hoje, temos tudo isto que temos porque eu nunca desisti dele, de mim, do sonho de ser livre, rica e feliz; a pobreza não é um cancro, minha prima.

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