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Amor, hoje vou te coronar de Álvaro dos Reis


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Já se passaram quatro dias que o Mateus não sai de casa. A quarentena estava a ser comprida a sério pela sua família. A empresa cedeu um computador para que ele pudesse trabalhar remotamente. Em dois dias, conseguiu fazer trabalho que levaria uma semana se estivesse a trabalhar na empresa. Tudo estava feito e, as restantes horas passava folheando em clicks às páginas do facebook. “Que tédio. Que solidão”. Dizia com os seus pensamentos que se esvoaçavam nas desinformações das redes sociais.
O seu filho tentara caçar alguns carinhos nos primeiros dias em que este trouxe o trabalho para casa, mas uma rede elétrica foi montada no lado oposto a mesa. “Imaginem que deste lado tem fios elétricos que fazem vedação da minha mesa. Imaginem que não estou em casa. Devem tratar-me como se estivesse no trabalho”. Dissera nas primeiras horas do dia de trabalho remoto.



Num segundo dia, brigara com a sua esposa, pois ela não tinha feito o almoço e, quando este s queixou de fome, a esposa retrucara: “Amor, estás no trabalho. Deves ligar com antecedência para que possa enviar alguém com o teu almoço. Afinal, não estas em casa e, nós nunca fomos ao teu trabalho”. Foi a primeira vez, após o seu casamento que almoçou com pão com carapau frio e molho de tomate.
No terceiro dia, já tinha retirado a cerca invisível em sua casa, mas tinham horários que ele mesmo estabelecera para os seus intervalos. Com trabalho todo adiantado, brincava com a criança. Lia as histórias. Dançavam. Cantavam. Enfim, eram momentos que ele jamais apreciara. “Meu filho está a crescer”. Notou com os olhos tenros.
No quarto dia, sentado em sua mesa sem nada a fazer. Sofrendo de solidão existencial, decidiu violar a sua própria norma. Antes das 12h, ele abandonou o seu escritório. Sai para fora. A Leia, a sua esposa, encontrava-se a lavar as roupas. Ele parou na porta por alguns instantes contemplando os gestos dela. “Nossa… Que coisa linda!”. Suspirou observando atentamente aqueles gestos das mãos esfregando a roupa. Leia trazia um vestidinho rosa, que não chegava aos joelhos. As mangas eram apenas dois fios que sustentavam a terminação do vestido na circunferência do topo. Naquele vestidinho, as ‘bundas’ da Leia pareciam o nosso continente Africano na parte ocidental. Os seus seios, duas papaias maduras, prontas para serem trincadas.



Mateus viu o quanto tem sido cego. “É tudo meu aquilo”. Suspirou novamente, sentido calor em todo o seu corpo. Às águas que caiam sobre o corpo da Leia, formavam uma bela cascata nos olhos do Mateus. Ela parecia a montanha de águas vivas, que matou a sede dos Israelitas na fuga do Egipto à terra prometida. “Ela é a minha terra prometida. Porquê andei em desertos, tendo em casa o paraíso do Éden moldado pelas mãos do Altíssimo?”. Pensava com um belo riso na face. Nas expressões dos seus olhos, não existia mais tédio. Nem solidão. Nem vazio existencial. O mundo parecia ser e existir simplesmente naquele quintal. E todas as leias universais, agiam no corpo escultural da Leia.
“Amor, hoje vou te coronar”. Disse ele sorrindo. Ela olhou despercebidamente e mostrou um belo riso. Mateus notou que ela não percebera às suas palavras. Aproximou-se dela. “Podemos lavar juntos?”. A Leia ficou surpresa. “E o trabalho amor?”. Questionou. “Nessa casa eu sou o Rei e tu és a rainha. Estou às suas ordens hoje e sempre”. Ela admirada, pediu que o Mateus pegasse nas roupas e as colocasse no estendal. Os dois pareciam crianças emocionadas. Dois adolescentes apaixonados. Como se aquele momento, fosse o primeiro dia de casamento morando na mesma casa. Seus corpos molhados. Seus olhos, nem o sol de junho da minha terra amada, lá na província de Tete, podia exceder aquele brilho. Os seus sorrisos, pareciam o desbrochar de uma flor no estio.



Beijaram-se como se fosse uma despedida. As suas mãos percorriam em lugares incertos. Perdiam-se na loucura daquele fogo ardente que camões descreveu. Suas almas queimavam e seus corpos suados transpiravam. “Hoje, quero te coronar toda Leia”. Disse ele. “Já estou totalmente coronada. Mate esse vírus com o calor de ti. Dizem que o vírus não resiste a altas temperaturas. Faça os meus termómetros corporais atingirem temperaturais vulcânicas”. Ahm, foi um momento solene. Preces divinais realizados pelos seus templos.
Mateus viu que o tempo com a família, era algo precioso. Comparava-se a uma oração às 3:00h da manhã. Trazia milagres inimagináveis. Realizações inconcebíveis. Quando ambos se vestiram, a Leia teve a graça de mandar uma piada. “Sr. Director, volte ao seu escritório”. Olhou-o nos olhos sorrindo. Deu-o um beijo longuíssimo. “Amor, faça-me teu escravo. Nada de trabalho, porque hoje, só quero te coronar”. Ambos sorriram. O Tempo, deixou de ser uma variável física naquele instante. Isaac Newton era um aprendiz na lei da impenetrabilidade, pois, no mesmo espaço cabiam dois corpos.
Ambos dirigiram-se para cozinha. Dividiam todas as tarefas. E sempre se ofendiam com beijos e abraços. Jamais imaginaram que a mesma receita, preparada por duas pessoas que se amam, sai um manjar dos deuses. Naquela tarde, ninguém pegou o remote da Tv. Foi uma tarde de música. Dança. Poesia. Jogos. Até anoitecer.
A noite, após o jantar, enquanto ele lia um livro, algo que a correria do dia-à-dia não o permitia fazer, escuta a voz da sua amada no quarto: “Amor, estou descoronada. Venha me coronar por favor”. Ele salta prontamente. Dá um grito de lobo. Uivando como se a lua estivesse cheia. Abre a porta do quarto e diz: “Amor, hoje vou te coronar”.

Álvaro dos Reis

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