Miller A. Matine, escritor moçambicano, entrega-nos, em “Este conto não tem um título”, uma espécie de romance de 62 páginas que é, antes de mais, um gesto de recusa: recusa o título, recusa a ordem, recusa a catarse. O que nos chega é uma narrativa que respira o desconforto da existência e expõe, sem pudor, a lama onde o ser humano se arrasta.
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foto de Paula Cristina |
A literatura moçambicana contemporânea tem-se caracterizado por um esforço de revisitação das condições sociais, políticas e existenciais que moldam a vida quotidiana do País. Dentro desse panorama, Miller Matine surge com uma proposta ousada e perturbadora em “Este conto não tem um título”. O próprio título, ou melhor, a recusa em nomear, já constitui um gesto estético e simbólico de grande peso: como dar nome a uma experiência de vida marcada pela fome, pela degradação moral, pela violência íntima e pela ausência do futuro? O silêncio do título é, afinal, o espelho do vazio existencial que percorre por toda a narrativa.
O centro de gravidade (posso assim dizer) de “Este conto não tem um título” encontra-se na voz de Namalhá. O narrador fala em primeira pessoa, ora como confissão, ora como justificação, ora como denúncia. No entanto, é precisamente essa oscilação que o torna uma figura literária densa: ele não é apenas a vítima de uma sociedade desigual, mas também cúmplice da sua própria ruína.
Logo no início, no primeiro capítulo, surge uma das frases mais emblemáticas: “Eu não sou glutão. Nem sequer sou insensível à dor alheia. O meu coração é mais mole que de galinha.”
À primeira vista, trata-se de uma defesa, uma tentativa de convencer o leitor da sua bondade. No entanto, essa autoafirmação soa artificial e contraditória, pois rapidamente o mesmo narrador confessa atitudes que desmentem a sua suposta sensibilidade.
O episódio do funeral do Dr. Miguel é paradigmático: “Fui ao funeral com o único objectivo de aproveitar as refeições.”
Aqui, o narrador expõe sem pudor uma motivação bem mísera, revelando-se disposto a instrumentalizar a dor alheia em benefício próprio. Ao mesmo tempo, essa confissão não deve ser lida apenas como prova de carácter duvidoso; ela também revela o desespero de quem, diante da fome, encontra-se reduzido à condição de sobrevivente.
Essa ambiguidade aproxima Namalhá do “homem subterrâneo” de Dostoiévski, em “Memórias do Subsolo”. Tal como o narrador russo, Namalhá é contraditório, autocentrado, e ao mesmo tempo lúcido na análise da sua miséria. Ambos se colocam como sujeitos à margem, conscientes de sua degradação, mas incapazes de mudar o rumo.
Esse efeito literário produzido por Matine é perturbador: o leitor é constantemente forçado a oscilar entre a empatia e a repulsa. Por um lado, compreendemos que Namalhá é fruto de uma sociedade excludente, corroída pela fome e pela corrupção.
Por outro, não podemos ignorar a sua conivência com a mentira, com o adultério, com a degradação moral. É essa dualidade que torna a narrativa viva e complexa: Namalhá não é herói nem anti-herói, mas a personificação de um ser humano em luta consigo mesmo.
No fundo, Namalhá parece sempre precisar justificar-se, como se estivesse em tribunal diante do leitor. E essa necessidade constante de provar inocência revela justamente a sua culpa.
Um dos traços mais marcantes de “Este conto não tem um título” é o modo como a fome e a miséria são representadas de forma grotesca. Miller Matine não procura amenizar a degradação; pelo contrário, expõe-na em imagens que chocam, que incomodam, que obrigam o leitor a encarar a realidade sem máscaras.
O grotesco, tal como pensado por Mikhail Bakhtin em “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento”, é uma estética que exagera o corpo, os seus excessos e as suas necessidades. Na narrativa de Matine, a fome é elevada a essa dimensão: não é apenas uma carência física, mas uma alavanca de ações mesquinhas, de gestos desumanizantes e de um imaginário que mistura o nojo e o riso.
O exemplo mais evidente surge quando o narrador descreve o seu apetite diante da comida servida no funeral: “Os pratos iam e vinham. E eu, sem vergonha, esticava a mão sempre que via um pedaço de carne. A dor dos outros parecia não me tocar; só o cheiro da comida me guiava.”
O episódio é brutal na sua sinceridade. O espaço do luto que deveria ser marcado pelo respeito e pela solenidade, transforma-se num banquete de sobrevivência.
O narrador não se preocupa em esconder a sua atitude; pelo contrário, confessa-a com um certo orgulho irónico, como se dissesse ao leitor: “julgue-me, se tiver coragem de passar pela mesma fome que eu”.
Este uso do grotesco não é gratuito. Ele cumpre uma função de denúncia social: em Moçambique, onde a fome e a desigualdade continuam a marcar o quotidiano, o episódio do funeral torna-se símbolo da luta pela sobrevivência em condições extremas. O grotesco, assim, traduz o choque entre o ritual social (o luto) e a necessidade biológica (a fome).
O grotesco aqui funciona também como resistência: quando a vida é reduzida ao mínimo (comer, beber, satisfazer desejos básicos); o narrador parece dizer que ainda é possível rir, mesmo que esse riso seja amargo. Nesse sentido, Matine aproxima-se de Kafka, onde o absurdo e o grotesco revelam as contradições da condição humana.
Mas há uma diferença fundamental: em Kafka, o grotesco é universal e metafísico; em Matine, ele tem raízes sociais concretas. É o grotesco da fome real, da corrupção quotidiana, da hipocrisia moral que todos conhecem e fingem não ver.
Assim, a estética do grotesco em “Este conto não tem um título” cumpre uma dupla função: por um lado, choca e incomoda; por outro, revela a verdade nua da sobrevivência, desmontando os discursos oficiais que preferem esconder a miséria em ternos bonitos ajeitados com gravatas.
O erotismo nesta obra não surge como espaço de prazer ou celebração do corpo, mas como espaço de conflito, culpa e degradação. Namalhá, ao narrar as suas relações íntimas, não se coloca como amante apaixonado, mas como alguém atravessado por frustrações, necessidades e contradições.
Um dos trechos mais reveladores é a descrição da sua relação com a Justina: “Os nossos encontros não tinham romance. Eram suor, cansaço, descarga. No fim, restava apenas um silêncio desconfortável, como se cada um carregasse uma culpa que não ousava nomear.”
Aqui, o erotismo aparece despido de qualquer idealização. Não há ternura, não há encantamento, apenas um corpo que se desgasta, que se consome, que se usa e se descarta. É a intimidade reduzida ao acto mecânico, desprovida de alguma transcendência.
Essa representação dialoga com a crítica de Georges Bataille em “O Erotismo”: o desejo humano é atravessado pelo interdito, pelo excesso e pelo risco. Mas em Matine, o interdito não se dá pela moral religiosa ou pelo tabu cultural, dá-se pela própria condição existencial. O erotismo é sujo, cansado, porque os corpos já estão marcados pela fome, pelo desemprego, pela violência doméstica.
Outro aspecto perturbador é a constante ligação entre o erotismo e a culpa. O narrador insiste em justificar-se, como se quisesse convencer o leitor de que não é um “homem mau”: “Eu não era um traidor por natureza. O coração sempre me pesava. Mas às vezes, quando a vida te sufoca, procuras no corpo de outra pessoa uma escapatória.”
Essa frase mostra o erotismo como fuga, como anestesia diante da dureza da vida. No entanto, a fuga é sempre temporária, porque a culpa volta e se impõe. Essa tensão entre o desejo e a culpa é uma das marcas mais fortes do romance do autor.
Além disso, o erotismo cá é também um espelho da sociedade: corpos usados, relações clandestinas, falta de diálogo entre parceiros. A intimidade transforma-se em campo de batalha, onde cada gesto revela não apenas a relação entre duas pessoas, mas também a violência simbólica que atravessa as estruturas sociais.
Nesse sentido, pode-se ler o erotismo de Matine como metáfora de um país em ruínas: corpos exaustos, relações fragmentadas, promessas de prazer sempre frustradas. O quarto, que deveria ser espaço de descanso e prazer, é apenas prolongamento da rua, do mercado, da fome.
Aqui, a obra encontra ecos em autores como Dambudzo Marechera, escritor zimbabuense que também explorou a sexualidade como expressão de degradação social. Tal como Marechera, Matine recusa o erotismo idealizado, preferindo expor a intimidade como sintoma de uma sociedade em crise/doente.
Em “Este conto não tem um título”, o corpo humano deixa de ser apenas um veículo de prazer ou existência e transforma-se em território da dor, da doença e da violência. A narrativa de Namalhá explora de forma crua o impacto físico e psicológico das relações humanas, reflectindo tanto traumas individuais quanto a degradação da sociedade que o cerca.
Um trecho emblemático ocorre quando Namalhá descreve a consequência de uma relação marcada pelo desrespeito mútuo e pelo abandono: “Senti a febre subir-me pelo peito, e cada batida parecia carregar o peso de todos os dias que nunca vivi. A dor não era só minha; era a dor de tudo o que havia à minha volta, que não tinha remédio nem perdão.”
Aqui, a doença física e emocional se fundem. Não é apenas o corpo que adoece, mas a alma que sofre com as feridas invisíveis de uma vida marcada pela violência, pelo descuido e pela marginalização.
A violência íntima, em Matine, não se reduz a agressões explícitas: ela se manifesta nas pequenas humilhações, nas traições, nos gestos que erodem lentamente o corpo e a mente. Por exemplo, a constante tensão nas relações com Justina e outras personagens femininas revela um ciclo de medo e resistência: “Ela recuava a cada toque, e eu avançava sem saber se queria dominá-la ou apenas tocar-me de alguma forma que me lembrasse que ainda existia.”
Matine aproxima-se, aqui, de reflexões psicanalíticas: o corpo e a mente não existem isoladamente, mas são afectados pelo contexto social, histórico e económico. A pobreza, o desemprego, a desigualdade e a marginalização funcionam como catalisadores da doença e da violência. Não surpreende, portanto, que os corpos narrados estejam sempre exaustos, marcados pelo cansaço e pela doença (física ou emocional).
A narrativa também enfatiza a impotência diante do sofrimento: o narrador reconhece o seu próprio corpo como um campo de batalha que não consegue controlar. As doenças não são apenas consequência de falhas individuais; são metáforas de um país e de uma geração que carregam cicatrizes profundas.
Matine, portanto, transforma a intimidade em denuncia social. O corpo, antes espaço privado, torna-se espelho de uma realidade colectiva: corpos que adoecem, que sofrem, que são usados e abandonados, mostrando como a violência e a doença são inseparáveis das estruturas sociais.
Ao colocar o leitor frente a este quadro, Matine provoca reflexão sobre responsabilidade, sobrevivência e ética nas relações humanas, destacando a interconexão entre o sofrimento individual e o colectivo.
A consciência do narrador é marcada por um peso quase constante: a culpa. Diferente de uma culpa episódica, ligada a um erro isolado, a culpa em Namalhá é estrutural, moldando pensamentos, ações e relações. É uma culpa que se estende não apenas aos actos praticados, mas também àquilo que deixou de ser feito, às oportunidades perdidas e aos afectos maltratados.
Um exemplo explícito aparece quando o narrador reflecte sobre as suas relações amorosas e familiares: “Olhei para trás e cada gesto que fiz ou deixei de fazer parecia gritar dentro de mim. Não havia perdão que me aliviasse; só o silêncio pesado da lembrança.”
A impossibilidade do perdão emerge como um tema central. O narrador reconhece a responsabilidade pelos seus actos, mas sente que nem o tempo nem a reconciliação poderiam apagar as marcas. O remorso, nesse sentido, torna-se uma forma de punição interna, contínua e inexorável.
Matine conclui que viver com culpa é, paradoxalmente, viver com consciência. A consciência, mesmo dolorosa, é a única ponte entre a experiência pessoal e a compreensão do mundo. Nesse sentido, o narrador permanece como alguém que sente profundamente, compreende suas limitações e observa o peso das ações humanas, tanto as suas como a dos outros, sem ilusões sobre perdão ou esquecimento.
Este conto sem título ganha contornos ainda mais perturbadores quando o narrador morto continua a falar. É um gesto ousado: o morto que se recusa ao silêncio, que insiste em narrar a própria ruína. Aqui, a literatura aproxima-se do delírio, mas também da oralidade africana, onde os mortos têm voz. Contudo, ao contrário do consolo ancestral, o que temos é apenas desespero e recusa.
Se há fragilidades, estão na oscilação de tons ( na brusca mudança de tons entre ironia, erotismo e tragédia), e no excesso de algumas passagens que poderiam ganhar com maior economia de palavras. Ainda assim, o que se perde em concisão ganha-se em intensidade: a prosa de Matine é oral, marcada pela cadência da fala e pela crueza da experiência.
Cada fragmento, cada pausa e cada escolha narrativa selecionadas pelo autor, contribuem para o efeito global de reflexão e empatia, aproximando o leitor da experiência do narrador de maneira quase que íntima.
Por fim, este é um livro que não busca agradar nem consolar. É um livro que expõe, que incomoda, que desestabiliza. Um livro que mostra o homem moçambicano e, por extensão, o homem pós-colonial africano na sua luta desesperada entre sobrevivência e dignidade.
Um livro sem título porque a vida, tantas vezes, não tem nome nem ordem, apenas uma sucessão absurda dos dias.
por: Paula Cristina
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