de lado de fora do bar, a lua infla as nuvens de luz. paito bebeu até meia noite. desce pelo atalho, para evitar a chatice da última hora, com os pés a badalar para lá e para cá, o medo a pulsar no peito. a sombra persegue-o como um meliante
quando desemboca na rua larga, que serve como espinha dorsal do bairro depara-se com dois meliantes. sustem os passos, pronto a empreender uma fuga, debalde. é lhe interdito a intenção com um berro estridente
«hei, parado. nem ouses em gritar»
o breu do álcool desvanece. paito, vê o brilho da lâmina da catana, estremece. um infortúnio, paito reconhece um dos meliantes
«ventura, és tu» diz paito
tomado pela vergonha, ventura fica com a cabeça curvada para baixo como um girassol no pôr do sol. os dois meliante sentem-se embaraçados com o reconhecimento de ventura. ventura faz um gesto de passar o indicador pelo pescoço, dá sentença para exterminar o paito, para que não abra a boca
«ventura, não tem vergonha fazer isso comigo»
ventura não tem mais palavras. obrigarampaito a tomar uma poção de pílula venenosa e coseram-no a boca. paito geme, grunhe como um porco no cadafalso. senti o calor da urina a correr nas pernas
na primeira luz da alvorada, rita risca o chão do quintal, recolhe o lixo e os restos de comida ao monturo. rita é quase sempre a primeira transeunte da rua. segue o eixo da rua, carregada com lata de lixo na cabeça. pela rua, depara-se com o corpo de paito estirado no chão
uma fila interminável de formiga cruza a rua, aos vaivéns, sorve o muco e carrega restos de comida que extrai da boca do paito. possuída pelo horror, rita atira a lata de lixo e retorna a casa a correr. sem ar para além o da respiração, a rita acorda os patrões aos berros com uma voz finíssima como agulha. deixa cair alguns fios de lágrimas
«paito está deitado na rua…»
olhos esbugalhados, a mãe se espanta desata a correr com a capulana a cobrir lhe os seios para baixo. o louco do padrasto nem se dignou a sair para prestar atenções ao malfadado de enteado. oseu interesse com zilda é esbanjar o amor. a noite anterior tinha sido uma noite de amores, vê-se pelas extensões da zilda, todas esguedelhadas
ofegantezilda arremessa-se por cima do corpo seco do filho, aos gritos
«meu filho, meu filho, meu filho»
a cara inundada de lágrimas, chora amargamente. esparrama-se por cima da fileira de formiga, obstruindo-lhes o caminho do seu labor. sobem-lhe, agora, pelas pernas, embrenha-a na calcinha. sorve-lhe o fluído da polpa alaranjada. zilda chora pelo filho, geme pelo incómodo das formigas.
como um magnata dos filmes americanos, peter invade a rua ao encontro da zilda. nesse enquanto, zilda cai desmaiada
as pessoas se afloram à rua, curiosas
«meu deus!»
cobre-se a cara uma senhora redonda de gordo, parece uma baleia fora de água. está tão arrepiada que não contem o horror do crime e desata um fio de lágrimas
muito sereno demais de provocar reprovação de atitude, peter disca alguns números leva o telefone ao ouvido, afasta-se enquanto efetua a chama, troca algumas impressões e volta à corola
«liguem a pic, policia de investigação criminal»
«já liguei»
donaconstança que conhecia bem o pai de paito tratou de ligar participando-lhe do sucedido
«fico-lhe muito grata constança»
«por nada»
o corpo fino da zilda foi levado ao centro de saúde para ser reanimado. rita ficou para zelar pelo corpo do paito, e responder as quaisquer inquietações. o pai do paito havia recebido a informação e decerto que estava a caminho
quando fausto chegou, a pic havia protegido o local com fitas amarelas e fazia o seu trabalho que bem o sabe – com bloquinho de notas o policial recolhia todos vestígios do crime
na cabine da ambulância, a sirene estava ligada, as cores dançavam, sem contudo uivar. fausto aproximou-se do outro policial alto, com óculos escuros assentados no nariz, que pelo sinal era o chefe, ordenava ao outro
«desculpa-me senhor, era meu filho…»
«o corpo será levado ao necrotério»
rita cuidou do paito desde os seus três anos, e agora que os cílios começavam a lhe germinar no bigode a morte abocanhou-o. nos olhos da rita, as lágrimas eram de tão mar que neles passavam navios ao longe. o tempo lhes atou um ao outro que rita era incapaz de conter as lágrimas
«maldito seja teu assassino, filho»
no centro de saúde, zilda acordou no grabato do hospital. sentiu cheiro a mórbido. no braço uma agulha espetada, recebia o soro gota-a-gota
«peter o que fazemos aqui?»
«passaste mal, amor»
«e meu filho, onde está, como ele está?»
«saímos já daqui, acalme-te…»
«peter, meu filho»
peter aninhou-se do grabato, passando a grossa mão de leve pelo braço da zilda
fausto ruminava a dor no peito como um ser apático, de modo algum, devia deixar as lágrimas lhe escaparem e escorrerem nas maçãs do seu rosto. homem não chora, e ele queria ser o bom exemplo
no bar «meu sossego» está o castro e domingos, amigos de paito, a tirar a ressaca de ontem, sexta-feira. a trio estivera junto ontem à noite tomando muitos copos de cerveja
no «casos do dia» fala-se de assassinato de paito, a boca costurada. este topónimo lhes parece familiar, ainda que clamam da sua ausência no recinto, o que não é muito habitual
«tia cecília, aumentava volume, faça favor» berra domingos
ficam atentos com olhares perdidos no plasma 32 inchs, acompanham o desenrolar do caso, com metades de cerveja nos copos assentados no balcão. nenhuma tossidela se ouve
estão intrigados todos
«meu deus» diz cecília
«não é possível» murmura castro
tia cecília faz um sinal de cruz como se acabasse de orar. estivera com a trio ontem, até alta hora, bebendo, conversando, as gargalhadas a subir nos ares
«paito…!» admira-se domingos
«que deus o tenha» diz cecília
não só perde um cliente, um amigo. desconhece a que eixo este mundo dá volta. como pode um humano tirar a vida do outro humano. não encontra nenhuma explicação plausível. ressentidos, castro e domingos terminam os copos de cerveja, pagam a conta e desvencilham-se pela rua.
Docente, Escritor e Poeta Moçambicano nascido na Terra de Boa Gente [Inhambane] a 02 de Março.
Cell:
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