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AS VIRTUDES DA GULA


Hoje é dia de festa, não me vai embaraçar a notificação remetida pelo mensageiro da madrugada, selada pelas acusações da consciência. Quero ver os arbustos estacados no solo das minhas gengivas a desabrocharem, satisfeitos com o trabalho dos moinhos que trituram os nacos de carne que enfenecem. Quero ver os meus beiços afogados na espuma da cevada, turbinada pelas invisíveis lombrigas estomacais do álcool, que trepam-me, enrolando as suas caudas nos galhos do meu cérebro.


Prefiro esta compensa de iguarias, não me move, nem tão pouco, o pudor,  da penitência do mendigo que  arrasta os seus farrapos de esperança sobre o pedestre da penúria – à busca de nacos de pão. Não me interessa, vou debicar primeiro estes grãos de migalhas até que as botas fiquem desprovidas de solas de tanto lambidas a poeira.


Hoje é dia de festa, serei a boca do rio que engole sapos, escarros e berros vomitados pelo esgoto, serei isto só, só isto sim senhor! Por esta noite para repelir as serpentes peçonhentas que me mordem o estômago repentinamente. É por isto que me mantenho horas e horas, imóvel, agarrado com todas as minhas forças à praça dos vadios, para servir de contentores de lixo dos condomínios apetrechados de glamour.


Hoje é dia de festa, festa de inauguração da retaliação, simplesmente me vou fechar; esta frágil garganta que engasga ao engolir a raiva misturada na saliva, pois a tesoura já está posta na fita da garganta e, conseguintemente, não me apetece beber o vinho da festa com a boca da garganta, como aquele atrelado de Chaimite que dançara ao ritmo da música de agonia.


Prefiro beber deste barril para enveredar ao sol que me vigia. Dêem-me agora aquela garrafa de vidro transpirando o cheiro aguçado de álcool, para  corroer a ferrugem da vergonha, de remorsos e de arrependimentos permeados  pela esponja da minha consciência, quiçá, estas breves gotas levem consigo o peso da gordura dos nacos e o álcool das bebidas usufruídas às escuras.


Revisão: Sérgio Raimundo

Autor: Xituculuana



BIOGRAFIA

Xituculuana , pseudônimo de Elídio Ermelinda Vilanculo. Escritor e poeta por vocação, publicou em revistas, antologias nacionais e internacionais, destacando a "Coletânea Ocaso – Vol. 1" organizada pela Massinhane Edições e a Comunidade Ressonâncias Literárias. 

Fundador da Netos Editorial, e completamente apegado à literatura, com expectativas de contribuir positivamente na arte, cultura e educação.


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