O presente texto pretende traduzir pedaços da conversa com o poeta Japone Arijuane, moderada pela activista social, Sheila Paula Marrengula, que aconteceu no grupo de WhatsApp do Projecto Tindzila, com o seguinte tema: a circuncisão da palavra na esfera do poema.
Biografia de Japone Arijuane
Japone Arijuane é poeta, jornalista, consultor de marketing, copywriter, roteirista e designer moçambicano, nascido na Zambézia (1987). Publicou “Ferramentas para desmontar a noite” (FFLC, 2020), “Dentro da Pedra ou a Metamorfose de Silêncio” (Literatas, 2014), prémio revelação CEMD-Lisboa. É menção honrosa no Prémio Literário INCM/Eugénio Lisboa (2019) com o romance “O Homem que vivia fugindo de si”. Formado em Publicidade & Marketing, pela Escola Superior de Jornalismo/Maputo. É membro da Associação dos Escritores Moçambicanos (AEMO) e co-fundador do movimento literário Kuphaluxa.
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Logo no início da conversa, Japone deixou claro que queria trazer algo mais prático para o Projecto Tindzila.
Japone: Olha, acompanhei com certo afinco e entusiasmo duas apresentações, a do Bonde e Nataniel, o que me levou a crer que vocês já beberam o suficiente, no ponto de vista teórico, sobretudo no que diz respeito a conceitos, julgo ser do vosso domínio o conceito de Palavra, Poema, e o que é e como de ver o texto poético; porquê, o quê, como e quando ler.
E acho que não preciso repetir que para o indivíduo se tornar poeta deve ler e ler muito, ler e ler. Ler paisagens, momentos, ler as pessoas, ler livros, sobretudo os clássicos, isso o professor Nataniel já bem o disse.
Voltando para o tema, Japone deixou ficar:
Quando o indivíduo está em constante exercício de leituras este está capacitado para escrever e reinscrever, o que leva à criação. Lembre-se não basta ler muito e escrever muito é preciso criar. A poesia é uma arte. Os poetas são chamados a criar e a recriar novos mundos.
Por essa razão, eu proponho uma nova metodologia, em que todos, que fazem parte deste grupo podem e devem participar, uma oficina poética. Mas antes deixem-me balizar o conceito daquilo que eu acho e chama de poesia.
Depois trouxe o conceito de poema e poesia:
POEMA é ou não! Não há poetas mais ou menos, ou é poeta ou não é (ponto final).
POESIA é uma linha ténue entre a emoção e a razão.
Depois trouxe um exemplo para elucidar o delírio da palavra:
Vamos a um exemplo bastante usado em jornalismo:
Diz-se que quando um cão morde um homem, não estamos perante uma Notícia, certo?
Para que estejamos perante uma notícia o homem é quem deve morder o cão. O que é inédito e insólito, daí que surge a notícia. Então para este texto chegar à poesia, a palavra deve delirar, deve partir dessa lógica formal e atingir outra lógica, a poética. Eu proponho o seguinte vamos vestir o amor assim que o cão morder a noite.
Como podem ver, não há aí um entendimento lógico formal, porque a noite sendo uma entidade abstracta, nenhum cão poderá morder, mas há uma lógica formal de que o cão morde coisas, agora se pode morder a noite aí está a magia da poesia.
Vou citar aqui um poeta que diz exactamente isso que vos digo, levar a palavra ao delírio.
No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá onde a
criança diz: Eu escuto a cor dos passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não funciona
para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um verbo, ele
delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz de fazer
nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.
(Manoel de Barros)
Chegados aqui, meus caros confrades, proponho a oficina que consiste no seguinte, eu irei colocar um verso e cada um de vocês irá escrever um verso a seguir e no final teremos um poema composto. Lembre-se que a ideia é levar a palavra ao delírio, não se preocupem tanto com a lógica, mas a poeticidade do que dizerem, ou seja temos de levar a palavra ao delírio. Eis o meu verso:
“Vamos vestir o amor assim que o cão morder a noite”
Japone advertiu:
Atenção, vocês não são obrigados a colocar o vosso verso de imediato, pensem e repensem, escrevam e voltem a reescrever, a poesia é oficinal. Façam circuncidar a palavra na esfera de poema sem embater em obstáculos, como o imediatismo.
Dos versos colectados, compôs-se o poema a baixo, dos seguintes elementos:
1. Adriano Hilário
2. Arnaldo Fernado Chipanga
3. Bachir Herinques Manhisse
4. Baptista Américo
5. Berruberru
6. David Augusto Bene
7. Domingos Ernesto Fombe
8. Dynamico el Captine
9. Hermenegildo Mondlane
10. Jerry
11. Júlio Vasco
12. Leonel Evaristo Chongola
13. Luís Nhazilo
14. Otildo Justino Guido
15. Sheila Paula Marrengula
16. Umaira Carlos Nhanombe
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QUANDO O CÃO MORDER A NOITE
Vamos vestir o amor assim que o cão morder a noite
embebedar as nossas almas na lucidez dos beijos
afogar os nossos corpos no leito do nosso amor
e procurar por de baixo da língua,
as ferramentas para desmontar a noite
Vamos vestir o amor assim que o pôr-do-sol
perder sua timidez
beber o sol escuro, com as suas alegorias
até a noite, não ser apenas noite
sentindo o tiritar de estrelinhas em nosso ser
costurar os beijos no silêncio do vazio
Vamos juntos ouvir a voz das estrelas
e da lua,
declarando-se para o céu
nesta noite linda como o teu olhar
Vamos vestir a noite no suor da madrugada
no sabor da mastigada de um pau
e de uma feijoada
vamos vestir a pele na cor da mesma linguagem
juntos na mesma linhagem
que ressoava melaço na diáfana escuridão
Vamos sorver a saudade que repousa
na almofada do tempo
numa tremenda solidão do vento
amando-nos de baixo dos olhos da deusa Vénus
oh deuses, vê-nos
nesse acto pecaminoso
Vamos descalçar o amor:
o amor não é coisa que se vista
porquê mendigar beijos
enquanto
podemos lamber os nossos próprios lábios?
E quando o cão da paixão ladrar
recusaremos ser apenas ossos mecânicos
que se deixam roer pelo amor inóspito
Vem amor
afogar os nossos corpos no leito do nosso amor
embebedar as nossas almas na lucidez dos beijos
deixe os seios do tempo alimentarem o sol nu
no colo da manhã antes de haver madrugada
rasgar a pele, essa caligrafia da solidão dos que morreram
e gota a gota, teça cada lábio dos teus delírios
Deixe-me tecer o céu na tua boca
plantando amor no teu ventre de palavras
para que seja a noite a desmascarar os nossos lábios
e jogar o abismo inédito
no sarcófago das palavras mais caras do universo
Vem amor
para me cobrir com o teu olhar húmido e laminoso,
com o delírio dos meus sonhos, numa saga alucinante
[caminhada]
vedada de florestas de palavras ásperas
Vem amor,
vamos vestir essa sede incessante no limbo do desejo
Mas não te enganes, mulher.
O cão são bocas, donas do silêncio, do câncer, do lábio, e da morte.
E agora, que cor teria a morte longe da noite
dos cães, [de ti] dos dentes e desta enorme ferida do tempo
em que tudo é um autêntico delírio?
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Já no fim da conversa, a moderadora, Sheila Paula, pediu para que o poeta tecesse as últimas considerações, as palavras foram:
Eu falo das primeiras impressões. Que todos desse grupo são pessoas incríveis e nos vamos sempre nesse meandro da literatura. E espero que vocês leiam e leiam sempre. Porque a literatura é isso. Ler o mundo…
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