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Uma entrevista entre caminhos que levam à origem com Otildo Justino


Podia nos falar sobre quem possivelmente seja Otildo Justino?
Otildo Justino é uma tentativa de curar a doença do tempo; atirado ao fogo da palavra e na dimensão da solidão, para costurar a eterna ferida do verso; e consolar a tristeza de todos os pássaros do mundo…
 


Pensamos ser uma questão provocativa, mas que merece ser feita sobretudo para quem trabalha com a subjectividade do eu. Ilustre, acima do nosso reconhecimento pelo seu trabalho vem a questão: como faz a descrição “Eu” e em que situação se liberta das tuas entranhas?
Eu somos muitos; infinitos; que alguns transbordam no papel. Procuro que no final dessa luta que travo dentro de mim – a batalha de caligrafias e sotaques dos deuses – saía a palavra, como espelho de todos que em mim afundam.Digo afundam, porque por dentro sou um rio de lágrimas do sol que queima de frio, do pássaro desprovido da arte do voo, do tempo que sofre por ser eterno, das mulheres que nunca foram pessoas, da água que sonha em ser terra, da distância entre a palavra e a língua que se há por criar; tudo isso forma o sangue que percorre o poema. E esses seres que em mim fundam se libertam depois de me incendiar, como se acabassem de incendiar as chuvas ainda no seu útero…
 


O que há demais na sua expressividade que acha que não encontraríamos em ninguém?
Tudo o que é demais é desnecessário. Contudo, a minha poesia procura ser a lâmina que divide o tempo;que procura simplesmente ser ela, carregada dos seus medos, incertezas e silêncios; aqueles que só os mortos e os que ainda não nasceram podem gostar. A minha expressividade carrega África como as mulheres de Homoine carregam na cabeça baldes de água com bebés nos colos, de Xitala Matiaté Madaukane, ou como o mundo carrega o sol…

Se não fosse para ser você o que seria?
Se eu não fosse eu, eu não existiria. Minha vida é esta: esses erros e tentativas. Não gosto de pensar noutra alternativa ou campo de batalha que não seja essa. Tudo neste universo está contabilizado: sabiam que a depressão é uma doença que podemos remediá-la com poesia?



“A literatura não é para todos” o que tem a dizer sobre este comentário?
Essa frase só faz sentido para mim no campo em que se aceita que “a vida não é para todos”. Porque literatura é vida; feita pelos Homens e para os Homens. E isso me faz pensar que o Homem é literatura de Deus.E a sua diversidade vem para preencher as possíveis lacunas nos gostos de cada um. Deste a oralidade, a visualidade e a escrita; a literatura é uma ponte feita pelo sangue e pela história dum povo, que liga todas as dimensões do tempo e da estética.

Quem descobre o outro entre a escrita e você?
Acho que foi um embate. Um vinha lento e o outro acelerado, mas para o mesmo ponto em que a luz é uma loucura, os dois corpos embateram-se e as suas peles, o sangue se misturaram e sujaram a alma límpida do papel…
 


Alguma memória inocente que se pode resgatar que condiz com a sua mutação, um amor, decepção, dor, etc.?
Existem pessoas que foram para mim: esferográficas que quando escrevem apagam.Lembro-me como se fosse sempre, o momento em que Deusa d’África, Rainha de Gaza, tempestade do Índico, tradutora de crocodilos,descendente lícita do rio Limpopo, passou-me inúmeras folhas A4 de poemas; enquanto me passava os poemas, as palavras foram:esses poetas são uma paragem obrigatória para quem quiser escrever poesia. E até hoje tenho aqueles poemas guardados dentro da minha caligrafia. E no mesmo ano, uma Editora pediu-me para enviar um livro meu, e nessa altura eu tinha um livro terminado, estavam num programa de publicação de novos talentos, eles queriam publicar o meu livro; falei para Deusa isso, ela disse para deixar passar essa chancela que me davam, porque não gostaria que aquele livro fosse a minha estreia no mundo literário, as palavras foram: trabalhe, quando chegar o tempo vais sentir sozinho, não corra com essas coisas, literatura é uma bebida que leva muito tempo para fermentar. E por conta disso até hoje tenho medo de publicar. Na verdade Deusa foi de certa forma, uma deusa para mim…



 
O que lhe inspira do comum e incomum?
Minha mãe já me falou que eu nunca poderia ser gordo se continuasse a escrever poemas. E hoje eu concordo. Escrever é tirar certas carnes em nós. E esse processo de se cortar me inspira. Essa dor me inspira. A dor pensada. A dor da palavra dolorida. Porque todo mundo que eu já tenha conhecido em toda minha vida tem uma dor que gostaria que o vento levasse; soprasse para o fundo do abismo; e os poemas são esses ventos que levam as dores das pessoas para dentro delas. Inspira-me também, o abandono. A solidão. O silêncio. O tempo. A palavra. O discurso. A caligrafia. A terra. A chuva. A semente. A foda. O caralho. E a puta que fodeu a minha vida três vezes em dois anos seguidos depois abriu as suas asas de água e voou…
 


Que há de belo que deve ser resguardado ao nascer e morrer do sol na tua escrita?
Tudo que escrevo é o nascer do sol, é o nascer do mundo, é o morrer de mim. O poema é essa morte que me habita e procura crescer dentro de mim, como crescem as substâncias abióticas que nunca nasceram. Em minha escrita há essa máquina de sorrir com o rosto triste, há essa ponte estreita que procura espelhar o universo e dar vozes aos silêncios da alma e da carne. Porque o meu poema é o abraço de quem não tem mais nada a oferecer…
 


“Otildo vencedor do prémio da FFLC na edição de 2019” como é viver isso?
Carrego na caligrafia uma responsabilidade por conta desse Prémio. Porque sou de certa forma um cartão-de-visitada literatura jovem moçambicana.Agora tenho que apenas justificá-lo; agora tudo depende de mim: sobreviver às doenças do tempo para que eu seja poeta…
 


Seria capaz uma nomeação ou título definir a tua potencialidade e se não o que pode?
Não encontro um título para definir tudo que sou. Dar nome às coisas é limitá-las. E gosto dessa ambiguidade. Dessa dilatação da palavra. Em mim moram aves e céus: sou um universo ainda por descobrir…
 


Por quem e para que fim deveria um lavrador de letras escrever?
Tudo é matéria para o poema. Não há fronteiras no pensamento e no coração. Os poetas devem escrever suas singularidades e universalidades como bem entenderem. Não existem temas específicos para arquitectar textos. Tudo toca o mundo. Toca às pessoas ou aos deuses…
 


“escrevo para estar em paz comigo mesmo, se não me entendem culpa nenhuma tenho” para quem escreve nesta perspectiva que observação tem a deixar? 
Se alguém escreve é porque espera um dia ser lido. A nossa missão é com o povo. Com os olhos doutro lado do tempo e do espaço. Sem a sociedade não há razões para escrever. Por outro lado, podemos dizer: a poesia é um brinquedo muito complexo. A compreensão, sobretudo, a interpretação é subjectiva. E o trabalho do poeta se limita apenas em escrever.O poema é sempre uma obra inacabada, por isso cabe ao leitor continuar escrevê-lo de acordo com a ferida que lhe dói na alma naquele momento da leitura…
 


O escritor,sobretudo poeta, deveria ser entendido?
Para mim, a poesia deve ser algo belo. E nesse conceito não entra a questão de ser algo “não compreendido”. O poema é um objecto erguido no espaço, bem longe da terra, cada um o vê dependendo da posição onde está; outros conseguem contemplar apenas o vulto azul, outros pensam que é verde, outros mais atentos percebem que é quadrado, triangular, circular, e outros acham que é esférico. Estão a ver, Tindzila! O que quero dizer com isso, é que compreender um poema do mesmo jeito que os outros, é matá-lo. E quando isso acontece o poeta não tem razões de escrever…
 


Membro e co-fundador do Projecto Tindzila, algo a dizer sobre o assunto?
É preciso que se faça mais. É preciso invadir os distritos e os bairros. É preciso levar o poema para a mesa dos deuses, naqueles espaços cujo único livro existente está escrito nas páginas da terra…
 


Considerações finais.
Nunca desistam do amor. Nunca desistam da humanidade.Porque a humanidade é uma árvore que se alimenta do amor. Sem o amor ela morre. Pois o amor é a indústria que forja o mundo. Sem o amor não vale a pena viver…



Entrevista feita por Jeconias Mocumbe

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