O Alberto parou de sorrir, os seus olhos assustavam, com semblante cismado, afastou-se de mim. - Não se aproxime. Estava confuso, levantei as costas dos meus braços para que avaliasse qualquer eventualidade; nada. Quase a chover de preocupação, vi o Alberto a fugir, enxotado de culpa, medo, repentinos. Tentei gritar. - Vai ficar em casa! Disse, de longe. Dei arrecuas. O dia está chuvoso, o guarda-chuva ficou em casa, como sempre, apenas lembro enquanto molho. Não paro de pensar no meu amigo, pior, pela forma como me tratou; pareceu o Ricardo, meu irmão, jovem, escuro, sério, calado, de 19 anos, que em toda sua vida só soube zangar. Tinha talento o miúdo. - Coisas da Família. Saí muito cedo da casa dos meus pais, com despreparo na ponta da mente, dias angustiados não me faltaram, o meu irmão denunciara-me, bem que, ao menos, pouca razão tinha, encontrou-me a olhos vistos fumando: - Mano, afinal fumas?, foram sombras no dia; engoli minha própria língua, as palavras sem nexo me balbuciaram nos lábios, eu, arregalado, totalmente obnubilado. Corri para casa de banho, pus o cigarro na sanita e mandei-o para o inferno. Já conhecia o Ricardo, estava sem desculpa, a de menos, escapatória, ora palavra alguma, dinheiro nenhum, que persuadissem o meu irmão. Liguei para o meu tio, Alfredo, expliquei-lhe que já estava crescido, a lenga-lenga toda, - vá ficar naquela casa que está em malhampsene. Faltou-me a verdade; a verdade só valha a pena quando dámo-la tanto ouvido.
Hoje se passam 25 anos, o fogão a arder, o silêncio que me acompanha no jantar, as lágrimas caem como vibra uma linha férrea, caem porque o meu irmão foi atropelado, nunca gostei da cara dele, detestava o sorriso, seu jeito queixoso, mas o queria vivo quanto quero essa dor, para que infernizasse a minha vida. O mimado morreu, todos de casa devem estar a brotar oceanos, sem apetite, com a vida lhes pesando o corpo. Amanhã será o funeral, ponho o Whisky e dou dois tragos, - não irei. O meu pai, sempre foi vingativo, não interessa como, contudo, irrevogavelmente me atribuiria culpas; a história do vizinho que tropeçou das escadas e enterrara a sua masculinidade, foi culpa minha, o meu pai disse, só pelo facto de eu ter dito: Coitado do velho. Até não nos falamos, poucas vezes tenho falado com a minha mãe, maldita, ela desaparecera com outro homem, há cinco anos querera me subornar com seus dinheiros. Apalpo na barba, com os pés estirados no banquinho, a imaginação corre pela fotografia da Madalena, meu eterno amor, a dona da minha dor. Ela morou por quatro anos aqui, de tanto não sabermos cozinhar, acostumamo-nos a merdas da culinária, foi-se pela preguiça que carrego; acordo e vivo a escrever, sexo para lá, copo para lá, insulto além, é carisma...risos... porém, foi fraca. Vejo a chamada do meu Tio, Alfredo, quer saber se vou ao funeral, - droga. - Tio, há dois dias que não consigo andar; deve ter percebido a astúcia. Tiro os pés do banquinho com esmero, vou a cabeceira deixar beata, mato a barata com chinelo, sempre fui simplório, nunca me decidi, as circunstâncias tem me feito gente, ah, e, eu, cumpro; herdi negligências do meu pai. Ponho whisky no copo, dou mais uma tragada, os olhos obedecem o peso da bebida.
É noite, a solidão é dura, zomba da minha cara numa hora desta, pego no jornal, tenho falta de paciência.
Leio: "fique em casa". Que barbaridade! Atiro-o no chão, - ouve lá, Satanás, o meu amigo Alberto falava do novo Coronavírus?! Isto é pouco assunto para deixar-me aterrorizado, com os pensamentos nas mãos. "Nada de cinquenta pessoas aglomeradas num certo local", mpsi. São sete casos, sete casos, porras, empurro a mesa, o copo, o livro Os Cus de Judas de Antônio Lobo Antunes, o maço de cigarros vão todos juntos - tudo bem, estou calmo. Uma mensagem no celular, é da minha irmã Hortência, - mano Mateus, o funeral é pelas quatorze e meia, de amanhã. Ignoro. Pego no andrajo no chão e limpo as gotas da bebida, da miséria. Do sono. Da tristeza. Frustração. Droga, ando perdido no mundo de mim; abro a TV, vejo de novo: " fique em casa", não mereço. Está frio, os pássaros cantarolam, continuo juvem morto de sociedade; saio da sala, de cueca de seda, sento no tronco e acendo o cigarro enquanto observo o céu lívido, a chuva cessou. Lembro das palavras do Alberto,
- fique em casa
, com sua cara de cabrão, perdigotos que me atingiam o rosto. Mais dói não saber decifrar, me engolfo; estou suspeito por viver sozinho e o safado, cara sem vergonha, aparece na terceira rua da minha casa para me ofender,
- fique em casa
posso ser tolo, não saber o que ele quis dizer, mas, o respeito, ainda mereço.
Luís Nhazilo
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