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Carta ao M. d'Castro

 


Maxixe, Julho de 2025

Meu caro poeta Mafenane de Castro, ou Mandove, como entre os da churchen te nomeávamos com afecto e admiração.

É com alegria, embora permeada de nostalgia, que respondo à tua carta, uma carta que me chegou como sopro de alma, como se as palavras tivessem atravessado os campos secos da ausência para florescer, de novo, entre as margens da memória e da poesia.

Partiu-me o coração, confesso, o teu afastamento. Não por egoísmo, mas porque eras parte essencial da tessitura do nosso grupo. O teu silêncio não foi apenas ausência foi como se a melodia tivesse perdido uma das suas notas centrais. A pastoral, sem ti, parecia ofício sem incenso, missa sem liturgia. Tu eras, e ainda és, presença poética. Um daqueles raros seres que, antes de escrever poesia, a encarnam. Por isso, ainda que ausente, continuámos a sentir-te em tudo.

Mas a vida segue mesmo quando não devia. E foi necessário aprender a normalizar o que não era, de modo algum, normal.

Gostaria, no entanto, de aproveitar esta carta para expressar a minha gratidão. Gratidão pela tua generosidade em partilhar caminhos, obras e nomes. Foi por tua mediação que entrei em contacto com poetas que hoje me acompanham nos momentos mais íntimos do existir: Alerto Bia, cuja escrita seca esconde uma profundidade quase abissal; Jeconias Mucumbe, que vive entre o absurdo e a exaustão da alma; e o grande Jeremias F. Jeremias, meu parceiro de tantas incursões líricas e boémias fomos, e continuamos a ser, loucos lúcidos nos esconderijos semânticos da poesia.

Foi também graças aos mesmos que me aproximei do poeta e pensador Jessemusse Cacinda. A nossa amizade nasceu de uma conversa curiosa e, diria mesmo, mitológica sobre o espírito de Samora Machel, que se dizia ainda frequentar a Assembleia da República, como se recusasse aceitar que a luta pela pátria terminara com a sua morte. Falámos ainda da cantora Zaida, de quem se diz que, mesmo depois de partir, continuava a cantar para os mortos. Estas estórias, a meio caminho entre o misticismo e a oralidade urbana, serviram de cimento entre mim e Jessemusse. A partir daí, os nossos diálogos tornaram-se densos, poéticos, reveladores.

Recentemente, conheci um outro nome que talvez ainda não tenhas cruzado ou talvez sim: Isaías Mate, que carrega consigo o poderoso pseudónimo Mudungazi. A escolha do nome não é meramente estética, mas uma afirmação simbólica, uma identidade que carrega o peso da história e da resistência. As suas obras, “Sonata de uma Nação Vagabunda” e “Memória Subterrânea”, não são meras criações literárias, mas autênticos mapas espirituais de um país em busca de si mesmo. A leitura destas obras não nos deixa ilesos obriga-nos a confrontar feridas mal cicatrizadas, realidades incómodas e verdades necessárias.

Não posso deixar de mencionar, com estima, o meu companheiro de jornada Luis F. Alfredo, que, mesmo sem se declarar poeta, carrega em si a delicadeza e a força da palavra bem dita. A sua oratória é quase música, e dele tenho aprendido o valor da escuta, da paciência e da construção verbal como acto de cuidado.

Foi também recentemente que realizei um sonho antigo: fui ao Brasil. Queria ver de perto a terra dos poetas que tanto admiro, Vinicius de Moraes, com a sua lírica transbordante, e Oswaldo Montenegro, cujas canções são autênticas narrativas de alma. E olha que, no meio da viagem, o destino fez-me cruzar com o professor Fernando, da Onioeste, escritor brasileiro de grande sensibilidade, com quem partilhei dias cheios de literatura e conversas que, em vez de passar, permaneceram. O Brasil revelou-se um espaço onde até o mar parece declamar poesia. Se pudesse, ergueria ali uma cabana, onde reuniria todos os poetas que amo, tu serias um dos primeiros convidados.

Querido Mandove, é com sinceridade que te digo: sinto-me rodeado de grandes poetas. E mais ainda: sinto-me abençoado por ter recebido a tua carta. Saber que voltaste a encontrar fôlego poético mesmo após as adversidades, que não te rendeste às primeiras angústias nem às frias forças da rotina, inspira-me. Porque, como bem disseste “uma vez poeta, para sempre poeta”.

A poesia, como escreveste, não é lúdica nem decorativa. É exigente, íntima, espiritual. É esse gesto de se ver e de se mostrar. Por isso, agradeço pelas tuas palavras, são mais que carta, são bússola.

Escreve-me sempre que o silêncio se transformar em verbo. E, quem sabe, nos reencontremos em breve no papel, na voz ou na presença. Há muito ainda por dizer. E, talvez, muito mais ainda por sentir.

Abraço poético

Por Carlos Raul



Carlos Raul é natural de Inhambane, cidade da Maxixe, e actua como assistente secretarial na Cs Sagrada Família. Amante da leitura e inspirado pelos poemas de Fernando Pessoa, tem se dedicado à escrita, publicando textos poéticos voltados à crítica social e existencial.


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