A Queda – Albert Camus (Ou a democracia como culpa colectiva?)
O meu contacto com Albert Camus deu-se quando era estudante de Filosofia na extinta Universidade Pedagógica – Delegação de Nampula. Comecei com “O Mito de Sísifo”, seguido de “O Homem Revoltado”. Mais tarde, li “O Estrangeiro” (definitivamente um dos melhores livros que já li), depois “A Peste” e agora “A Queda”. Posso afirmar-me suficientemente conhecedor da obra de um dos meus ídolos.
O livro é um monólogo de um parisiense que se apresenta como “juiz-penitente”, Jean-Baptiste Clamence, e que narra, num bar de marinheiros de Amesterdão, o México-City, as peripécias da sua vida na capital francesa. Jean-Baptiste atingira o sucesso na alta sociedade como advogado respeitado, vangloriando-se tanto dos seus dotes na defesa de causas nobres como das suas conquistas amorosas.
A escrita de Camus é incómoda para quem procura, através dos livros, confirmar as suas convicções. As palavras do seu personagem-narrador fazem-nos refletir sobre o ser humano como simultaneamente dotado de força e fragilidade. Através da sua força, constrói uma carreira brilhante aos olhos dos padrões da sociedade; através da sua fraqueza, mete-se em incursões que preferiria manter ocultas.
Camus escreve o seguinte: "Como sei que tenho amigos? É muito simples: descobri-o no dia em que pensei em matar-me para lhes pregar uma partida, para os castigar de uma certa maneira" (pág. 119). A Queda percorre diversos temas, maioritariamente de natureza existencial, mas também aborda questões sociais e políticas. Explora profundamente o desejo humano de vingança e a vontade de que o outro seja castigado, o que conduz à tendência natural das pessoas para formar opiniões sobre quem não conhecem.
"Encontrei inimizades sobretudo entre os que não me conheciam senão muito por alto, sem que, à partida, eu os conhecesse. Suspeitavam, sem dúvida, de que eu vivia demasiado bem e abandonado à felicidade: isso não se perdoa" (pág. 123). O personagem narra como a maldade, muitas vezes, funciona como um mecanismo de defesa do ser humano que, para se proteger das próprias autoacusações, prefere julgar o outro, mesmo que não o conheça. Afinal, o grande sonho do homem é ser inocente e vive desejoso de que as suas virtudes nunca sejam postas em causa.
"Não acredite nos seus amigos quando lhe pedirem que seja sincero para com eles" (pág. 128), remata o personagem-narrador, num monólogo numa noite em Amesterdão.
O protagonista entra também nas questões políticas da sua época e não poupa os maiores críticos do sistema – tanto político como religioso-moral – ao mostrar que recorrem aos mesmos vícios condenatórios que definem a essência do ser humano.
Na sua narração, Jean-Baptiste refere-se àqueles que anunciaram publicamente um manifesto denunciando a opressão que os oprimidos faziam pesar sobre aqueles considerados "do bem". Os factos que narra, para quem tem familiaridade com a História de França, fazem lembrar a figura controversa de Jean-Paul Marat, intelectual público e figura influente da Revolução Francesa, que popularizou a expressão "Quem é o inimigo?" através do seu método de perseguição aos grupos mais moderados, por considerá-los contra-revolucionários, no seu jornal “L’Ami du Peuple” (O Amigo do Povo).
A leitura deste romance do magnífico Camus é um convite a refletir sobre o facto de que todo o homem, por mais revolucionário que seja, é apenas um “homem” e, por isso, está sujeito ao desejo mesquinho de ser celebrado, amando quem o celebra e querendo vingar-se de quem o contraria. Ou seja, aquele que prega publicamente o amor pelo próximo, ama, na verdade, a si mesmo. Há aqui um diálogo com Sartre, sobretudo quando este ainda era leitor de Edmund Husserl e escreveu “A Transcendência do Ego”, e também na sua peça “Entre Quatro Paredes”, onde afirma: "O inferno são os outros".
Tenho muito mais a dizer sobre os pontos de encontro e desencontro entre Sartre e Camus, mas termino por aqui. Antes, porém, permitam-me transcrever mais uma citação de Camus através do seu narrador-personagem, Jean-Baptiste Clamence:
"Quando formos todos culpados, será a democracia. Sem contar, caro amigo, que é preciso que nos vinguemos de ter de morrer sozinhos. A morte é solitária, ao passo que a servidão é coletiva. Os outros também terão a sua conta, e ao mesmo tempo que nós. Eis o que importa. Todos juntos, enfim, mas de joelhos e de cabeça dobrada" (pág. 204).
Jessemusse Cacinda
Coimbra, 07-03-2025
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