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Das causas às consequências




De 1974 a 1976, viveu-se um período de ouro em Moçambique. Cheirava-se a liberdade. As ideias fluíam. As livrarias deram-nos todo o tipo de literatura - da área política, económica, a outros ramos do saber social. Disso tenho exemplo da livraria Ovedekula, em Quelimane. De 77 em diante, tudo mudou: as livrarias abarrotaram-se  de obras escolhidas de Lenine e outras edições da Progresso, da  extinta União Soviética.

 Desses tempos áureos  apaixonei-me pelos conceitos de legitimidade democrática  e legitimidade revolucionária. Naquela minha adolescência política, tentei compreender, no quadro da legitimidade revolucionária,  os actos  das autoridades  em obrigarem as instituições públicas e empresas estatais a afastarem e não  empregarem cidadãos que se beneficiaram de bolsas de estudo angariadas no tempo do obreiro da unidade nacional, Eduardo Mondlane, aos então jovens moçambicanos, maioritariamente do centro e norte de Moçambique. Vi doutores em ciências  exactas, e de outras áreas de conhecimento, que voluntariamente regressaram ao país para contribuírem no desenvolvimento da pátria, a serem preteridos em escolas secundárias, e em empresas, por, pretensamente, terem a conotação de reacionários. Anos depois, soube de que um Doutorado em Direito Internacional, caído em desgraça, e que havia sido apadrinhado e nomeado por um governante, de que fora colega, como responsável por moinhos em Nampula,  fora afastado do cargo, logo que foi denunciado. Exemplos como estes eram incontáveis. Aos que pertenceram às tropas especiais, tiveram a vergonha de ver as suas fotografias postadas nas vitrinas de empresas e repartições públicas, como comprometidos.

As minhas dúvidas sobre a legitimidade revolucionária dissiparam-se quando aterrei no aeroporto de Lichinga, em Fevereiro de 1978, para iniciar as minhas actividades como professor do ensino secundário. Terra no fim do mundo, diziam, em tom jocoso, colegas  afectos a províncias mais atraentes. À  hora do jantar, no dia da chegada, uma quinta feira, na pousada de Lichinga,  tivemos, eu e os meus colegas Carlos Lauchand (hoje doutorado em algum ramo das matemáticas) e César Augusto dos Santos, biólogo já  falecido, a indigente companhia de quem então se designava por professor de educação politica – gente recrutada sem o mínimo de critérios académicos e pedagógicos -, a perorar sobre a Frelimo e a luta de libertação, e a importância do Niassa para o desenvolvimento do país. Era a educação moral dos novos tempos. Novatos que éramos, aguentamos o embate em silêncio. O vinho romeno então em circulação suavizava-nos a ira, e depressa fazia-nos esquecer as barbaridades que o professor de educação política dizia. Dias depois, num ambiente festivo, em frente ao cinema ABC, cruzei-me com um grupo de jovens precocemente envelhecidos, dançando, sem graça, a makwaela do nosso sul. Perguntei-os de onde vinham, ao que me responderam, indolentemente, virem do sul. Intriguei-me, pois estavam com camisas desbotadas, calças sem cintos, sapatos sem atacadores, sorrisos esquivos a tentarem disfarçar a ausência  total ou parcial de dentes. Conversei com eles em changana. Soube, então, para meu espanto, que faziam parte do grupo de trabalhadores do Porto de Lourenço Marques (Maputo) que, em Maio de 1974, fizeram a primeira greve pôs 25 de Abril em território moçambicano. Na altura, Almeida Santos, então Ministro de Coordenação Interterritorial do governo português, em visita a Moçambique, conseguiu pacificar os grevistas, aceitando negociar o aumento de salário. Foi antes do governo de transição, antes da proclamação da independência, antes da Frelimo tomar o poder. Eram jovens na faixa etária dos 20/30 anos. Queriam, na greve de Maio de 74, dizer adeus ao colonialismo, reivindicando, em liberdade, um salário justo. Mas a  independência que adveio deu-lhes a conhecer o “inferno” dos campos de reeducação. Mandei às favas (ao tempo pouco conhecia outras expressões mais terrenas, mais moçambicanas) a chamada legitimidade revolucionária. A pouca militância que ainda brilhava em mim, foi-se definitivamente quando, em  princípios  de 1979, num comício em Lichinga, vi Samora Machel lendo, coisa que não era habitual, um discurso, e  a atrapalhar-se nas páginas. Soubemos depois que a sentença de morte de Uria Simango e esposa, Joana Simeão, Lázaro  Kavandame, e outros, havia sido decretada. Senti então o que anos depois viria a escrever e a dizer com reiterada força: a independência de Moçambique não agregou, segregou. Não demos a liberdade ao Homem! Aprisionamo-lo em conceitos de obediência e unanimidade. E como consequência a revolta popular foi-se manifestando em silêncio e com armas. 

Nos comícios outrora concorridos, passamos a ter, a partir de 1982, a  presença  de tropas que não nos deixavam sair do perímetro reservado ao evento, nem para as necessidades menores.  A impopularidade crescia. A negação do outro, a recusa de narrativas diferentes, deu-se definitivamente em público quando Samora reuniu com os presos políticos na escola secundária Josina Machel. Os presos políticos  deixaram de existir como entidade autónoma, como uma força com a sua própria narrativa. Foram cooptados. Os que recusaram caíram em desgraça. Os escombros da Vila Algarve, antigo edifício da Pide, são o exemplo acabado do branqueamento da memória  colectiva.

E a guerra instalou-se. Os outros, os que ousaram dizer não,  tornaram-se bandidos armados, macacos, selvagens, brutos, vândalos. Com o Acordo de Incomati (1984),  falou-se da quebra da espinha dorsal do inimigo. Mas a guerra continuou. Em 83/84, não  posso precisar, Samora, com o lado intuitivo que lhe era característico, previu o descalabro da primeira República, ao proferir,  com elevada dignidade, o seu testamento, num comício público, dizendo: “Samora não trouxe a fome, Samora trouxe a independência”.  A Primeira República fracassou. Rescaldo: 1.000.000 (Um milhão) de mortos, e nenhum Monumento em memória das vítimas. A chamada massa pensante onde estava? Em hosanas ao prócere da nação, totalmente anestesiada. 

Entramos formalmente na legitimidade democrática com a queda do muro de Berlim, e a crescente pressão da guerra que se alastrara por todo o país; mas  a recusa pela pluralidade de ideias, pela diferença, mantinha-se. A legitimidade revolucionária  pairava e ainda paira na mente de muitos. A camada intelectual e a classe média,  no geral, nunca se deu ao trabalho de escrutinar o poder do dia. A revolta veio sempre da base, da população, dos que não têm nada e nem nada a perder. Nunca houve uma aliança, característica da nossa recente História, entre a classe média e o dito povo. Daí a estranha e indigesta reverência, nos tempos que correm, à chamada reserva “moral” da sociedade. As pessoas perguntam: Porquê este contínuo silêncio da maioria dos intelectuais de ontem e de hoje? Em texto anterior respondi sobre a morte (figurada) deles. Mas  hoje respondo de novo: estão sempre aguardando pela chamada – via telefone ou celular -, para entrarem no palco, quais prostitutas desrespeitosas (acrescento o des à peça de Sartre): a cena continua a  passar-se num  quarto simples e com um telefone e celular à mesa da cabeceira. Não há  um homem misterioso, mas vários. Ela vende-se a todos por qualquer preço. A verticalidade deixou de existir. Não se assumiu aquilo que Camus afirmou que o verdadeiro amor à  Pátria é a capacidade e o direito de dizer Não! Hoje, para  nossa tristeza, a elite divide-se, salvo raras excepções, em machelistas, chissanistas, guebuzistas, nyussistas, e, agora, em chapistas. Ninguém pensa o país. Esperam somente que o telefone toque. E neste entretanto agridem o Venâncio, homem da classe média, culpando-o das manifestações violentas, do desnorteio em que vivemos. Ninguém fala das mais de trezentas mortes, como ninguém mais falou de um milhão de mortos, porque é a populaça. Querem  crucificar o Venâncio para que a paz podre volte a reinar, e os telefones e celulares  retinem, de modo a que os apetecíveis cargos públicos estejam à disposição de gente sem carácter e sentido de pátria. O importante para eles é encher os bolsos com “coisas sujas e inconfessáveis (verso do poema de J. Rebelo)”. Venâncio Mondlane é um empecilho para muitos. Mas  esquecem-se que o  vento da História não se pára com as mãos. 

Venâncio Mondlane foi, como poucos, um grande tribuno na Assembleia da República. Raros, naquela assembleia, frequentemente atacada pela doença do sono, ousaram ter como ele um discurso coerente e consentâneo com a realidade que se vive em Moçambique. E dentro dos direitos que lhe assistem, como cidadão  e político, quis aventurar-se para outros patamares. Obstruíram-lhe o caminho. E hoje, para o espanto dos distraídos, o homem arrasta multidões. É um facto. Negar esta realidade, dizer que Venâncio Mondlane não é  um interlocutor válido, é tapar o sol com a peneira. 

O que posso dizer aos meus compatriotas, neste momento de grande dissensão, é  que haja saúde mental. Precisamos de reconhecer o outro, e viver de facto, na diferença. Vivenciamos, ao longo destes cinquenta anos de independência, muitas e nefandas estratégias de exclusão de quem pensa diferente. Se queremos, como país plural que tanto alardeamos, entrar na roda da legitimidade democrática, que façamos, em definitivo, o digno funeral da legitimidade revolucionária.


Ungulani Ba Ka Khosa

Maputo, Fevereiro de 2025

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