Bertina Lopes |
Por: Nelson Saúte
Bertina Lopes, nascida a 11 de Julho de 1924, na vetusta Lourenço Marques, foi uma artista de um talento assombroso, atravessou longas e diversas épocas, inventou-se e reinventou-se em vários estilos, técnicas e cores, desde o figurativo ao abstracto, numa colossal jornada, iniciada em Moçambique, prosseguida em Itália e profusamente disseminada pelo Mundo. A sua pintura, a sua escultura e o seu ativismo eram, quando morreu, a 10 de Fevereiro de 2012, aos 88 anos, em Roma, aclamados e ela tinha então o beneplácito dos deuses.
Malangatana, na sua verve, na sua exuberância, na sua generosidade, na sua mítica prodigalidade, disse que Bertina Lopes era a mãe e o pai da pintura moçambicana. Esta cordialidade de um génio para outro génio, de um prodígio para outro prodígio, de um fundador para outra fundadora, parece-me mais fecunda, benfazeja, do que aquele ditame que, ao descrever a artista, assaca-nos as suas origens biológicas. O incomensurável génio da pintora deve muito mais ao seu talento portentoso e à sua obstinada ou árdua procura e afirmação do que propriamente ao facto de ter nascido do pai ou mãe com as origens que tinham.
A esta distância, poder-se-á dizer que Bertina foi, de facto, uma mulher extraordinária. O seu percurso é notável, o seu dom gigantesco, a sua ética e as suas lutas justas e urgentes. No centro de Roma, no ocaso da vida, tinha a seus pés, presidentes e cardeais, embaixadores e ministros, artistas e admiradores, amigos. Vivia entre quadros, com declarações que lhe deixavam nas paredes e uma indómita vontade de sonhar. Era a sua casa-atelier, a sua “casa-bohème”, como a chamou uma outra soberba figura, a crítica literária Luciana Stegagno Picchio.
Bertina iniciara com uma colectiva em 1956 onde expusera pela primeira vez. Morreria exactamente 56 anos depois dessa estreia. A sua pintura tinha uma força alegórica brutal. Quer fosse a que lhe adviesse das figuras espantosas que lhe nasceram das mãos nas suas primícias, fossem os totens que lhe sobrevieram depois ou as cores explosivas que se lhe definem. Foi livre e libertadora, revolucionária e disruptiva, crítica e empenhada, devota do amor e dos seus prodígios. Ainda hoje espantam-me os meninos da Mafalala, ou os retratos, quer das irmãs ou dos seus alunos, ou aqueles olhos municiados de revolta.
Nos seus primórdios pertenceu à ala dos fundadores. A sua pintura dialoga com a poesia de José Craveirinha, Noémia de Sousa ou Rui Nogar, com os contos de Luís Bernardo Honwana, com a fotografia de Ricardo Rangel, com a pintura de Malangatana. É a força dos nossos instauradores. Dos que intuem a moçambicanidade, dos que se afirmam na dissensão em relação ao “status quo”, dos que combatem pela justiça, dos que fazem da luta e da afirmação identitária uma desinência. Um projecto de vida. E nisto existe um halo geracional, indubitavelmente.
Bertina Lopes é também uma pintora intrinsecamente literária. São míticas as suas criações à volta dos poemas de José Craveirinha ou Noémia de Sousa. Aliás, ela afirmava encontrar na poesia de Craveirinha motivos, causas ou razões para a sua pintura. A sua obra é impetuosa, opulenta, transbordante, rica, viva, enérgica, vibrante, faustosa.
Um dos seus deuses tutelares foi Picasso e o seu cubismo. Claudio Crescentini, autor de “Bertina Lopes: tutto (o quasi)” (2013) disse sobre a artista moçambicana: “Após uma primeira esboçada, ainda que delicada, aproximação à arte, a pintura de Bertina Lopes impôs-se, desde logo, pela sua forte figuração expressionista e pelo compromisso político dos conteúdos, arrastados depois por uma subjectiva nova leitura do signo de Picasso”. Mas ela não se tornou epígono dos mestres. Soube criar a sua própria identidade, a sua personalidade, os seus referenciais. Começou por ser visceralmente moçambicana e seria com o tempo profusamente universal. Picasso, Braque, Matisse não impediram a sua originalidade, a sua fulgurante personalidade.
Num concurso para um painel do Banco Nacional Ultramarino (hoje Banco de Moçambique), ganho por Garizo do Carmo, Bertina Lopes escolhe como proposta a história do ritual do lobolo. Escusado será dizer que ela jamais ganharia tal concurso. Craveirinha fez a defesa da sua escolha e da sua ética como artista: “Foste o único artista de Moçambique inteiramente moçambicano na obra que apresentaste”. Aliás, o poeta irá motivá-la a prosseguir nessa senda identitária, “do lugar onde temos os pés”. Estávamos nos efervescentes anos 60.
Bertina estudara em Portugal na António Arroio e na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Regressada ao seu país de origem ensina desenho em escolas da então Lourenço Marques ao longo de 9 anos. Em 1953 participa no concurso anual de artes plásticas. Na sede da Associação Africana dá aulas de desenho e pintura decorativa e dirige a escola de arte infantil da agremiação. Em 1958 faz a sua primeira individual: desenho, guache e óleo. O “Paralelo 20” faz-lhe importantes encómios. Em 1960, na Poliarte, outra individual. Eugénio Lisboa redige o texto do catálogo. Divisa-lhe o “espírito de procura permanente, irrequieto, insaciável”. Afinal, o que irá ser a sua divisa e a sua divícia, a sua herança e a sua facúndia. A figura está no centro dessa busca. O seu grito visceral. Para além do domínio da técnica, da cor ou da expressão, a natureza social da sua expressão.
É dessa época a exposição de 23 óleos quase todos baseados nos poemas de José Craveirinha e Noémia de Sousa numa iniciativa patrocinada pelo Núcleo de Arte. Os dois poetas são a eloquência da revolta, a veemência da luta, a expressão da moçambicanidade. A invenção dessa moçambicanidade. O libelo e a indignação. Bertina dá primazia ao figurativo. Afinal, a poesia de Craveirinha e de Noémia não são o abstracto, antes pelo contrário. Começa a sua afirmação.
Participa em colectivas, faz individuais. Quando o ar se torna irrespirável, nesses ominosos anos 60, decidi partir. Tinha 9 anos de ensino e já era uma artista de gabarito. O seu casamento com o poeta Virgílio de Lemos dissolvera-se, tinham dois filhos. O cerco apertava-se. Primeiro em Lisboa, com uma bolsa da Gulbenkian, depois Roma com uma subvenção da mesma fundação. Conhece artistas, mergulha no meio, estabelece-se longe da repressão. Casa-se com Franco Confaloni. Em 1965 torna-se italiana. Perde a nacionalidade portuguesa.
A sua obra ganha mundo: Lisboa (1961), Porto (1963), Roma (1970), Veneza (1975), Madrid (1976), Badgade (1981), Maputo (1982), Luanda (1983), Praia (1985), por aí fora. Prémios, como Rachel Carson, ou Gabriel Dinunzio. Segue-se-lhe o reconhecimento, a veneração, as homenagens. Se nos anos 50 evocava Luisa Chewene, nos anos 60 Fanisse, nos anos 70 Mussunda, o grito, a súplica, a violência, a noite, o tótem, em 1975 virá o sol, a festa e a esperança. O seu afro país Moçambique sempre de permeio. A morte do Presidente Samora devolve-lhe o grito de revolta em 1986. Ela quer que seja o último. No entanto, sempre as suas raízes, a esperança que sobrevirá nos anos 90, mas também a morte e a pungente evocação do filho Virgílio. Depois o espaço, o seu infinito potencial. A sua identidade aprumada. As suas metáforas. África, essa África adentro. Em Julho de 1994 realiza uma grande exposição em Maputo. Elusiva e ostensivamente colorida, a África da infância refulge nas suas obras. Em 1982 realizara no Museu Nacional de Arte uma importante exposição. Estes serão os dois marcos pós-independência de Bertina em Moçambique. Rui Nogar, num colóquio alusivo à sua obra, aquando da exposição de 82, descreveu: “Nos quadros da Bertina Lopes vemos uma conquista, desespero, ódio ao ódio”. Bertina, acrescentava o poeta, está sempre presente “com violência” na sua obra: a sua tela denota sempre “explosão cromática”, sobretudo “explosão humana”.
Luciana Stegagno Picchio escreveu um dos mais belos textos sobre Bertina: “Antiga como a África dos seus primórdios de fidelidade, moderna e futura como a Europa da sua sabedoria e escolha artística”. Ali estão os signos, as metáforas, as máscaras, os tótemes. Ali está a busca incessante. Ali está a sua identidade. Os rostos e os gritos, a esteira e a serpente, os azuis e os amarelos, os vermelhos, o preto e branco. África sempre, no seu luto perpétuo, na sua noite escura, na sua esperança obstinada. Uma obra ontológica. Bela, onírica, elusiva, ostensiva. Prodigiosa.
Conheci-a nas paredes da AEMO, conheci-a na casa de José Craveirinha e nas conversas com o poeta da Mafalala, conheci-a na cumplicidade com o Rui Nogar. Conheci-a de ouvir Luís Bernardo Honwana falar esplendorosamente dela. Ou nos testemunhos do António Pinto de Abreu que voltava de Roma sempre efusivo, inflamado, ardoroso. Ou do Tomás Viera Mário. Ou da Paola Rolletta, activamente vigilante sobre o destino da sua obra. Conheci-a dos testemunhos longínquos do Virgílio de Lemos. Sabia dos amigos que a visitavam em Roma, que deixavam escrito nas suas paredes as suas profissões de fé, ali onde ela os recebia, no centro da capital italiana, sobre os telhados da cidade, lugar agora órfão dela e da sua obra.
Hoje passam 100 anos sobre o seu nascimento. Sei das declarações de intenções de resgatar a sua obra. Ou dos avisos de que esta, com a sua morte primeiro e depois do Franco, perder-se-ia. Mas nós somos pródigos nos desígnios e incapazes de fazer o que quer que seja. Agora, é tarde. Lá fora publicam-se livros, a sua obra é referenciada, o seu nome celebrado. Aqui, como sempre, ficamo-nos pelas bravatas. Nada fazemos. Nem por Malangatana, nem por Bertina, nem por Craveirinha, nem pela Noémia, nem pelo Fany Mpfumo. Não fazemos por nós. Somos ineptos, acintosamente inábeis. Somos moçambicanamente inadimplentes.
KaMpfumo, 11 de Julho de 2024
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