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Prelúdio pós mortem em (de) R(apper) maior

 Por Zeferino Ngoenha. 



Em Janeiro escrevemos a vida post mortem de Cabral, em Fevereiro a vida post mortem de Mondlane, em Março o réquiem em bro (Carlos Carvalho) maior, em Abril, vistas as mórbidas circunstâncias, estávamos para salmodiar um réquiem em R(apper) maior. Porém, a – ainda curta – vida post mortem de Azagaia (que desnuda as contradições da nossa sociedade e as dissonâncias graves entre o povo e o seu governo) está a suplantar a sua existência histórica. No cerne dos acontecimentos em torno do seu falecimento e da celebração da sua vida, está subjacente um debate ligado à busca da verdade e da justiça. Infelizmente a filosofia chega sempre tarde (...), ela aparece no tempo depois que a realidade completou o seu processo de formação (Hegel).



No processo de compreensão da condição histórica, as artes chegam primeiro: Homero antes de Platão, Langston Hughes antes de Alain Locke (Black Renaissance), Césaire antes de Hountondji ou Craveirinha antes de Castiano. Mas as artes incidem de maneira diferente na sociedade. Compreender Mia Couto, interpretar as obras de Mabunda ou as fotografias de Mauro Pinto é deveras mais difícil que entender a mensagem dos K10 ou do Wazimbo, que, aliás, não precisão de uma galeria de arte, de uma sala de teatro ou de uma biblioteca – com as suas línguagens herméticas para os não iniciados –; que ouvir e apreender a música que nos chega, nolens volens, das rádios nos bairros, barracas, chapas (a música convida-se aos nossos espaços interiores, sem pedir autorização). Talvez por isso a arte de musicar a vida desempenhe um papel fundamental na criação, questionamento e sedimentação das verdades nas sociedades (Heidegger, A Caminho da Linguagem); é como se a música carregasse sobre si uma função emocional, mas também política.


As primeiras manifestações (documentadas) que acompanham as vicissitudes históricas do nascimento da africanidade (genealogicamente diaspórica, segundo o filósofo Eboussi Boulaga) foram os spirituals e o gospel, que Willam Du Bois chamou sorrow songs: melodias e líricas de tristeza e lamentação. No período pós-escravatura, a acompanhar o movimento do Renascimento Negro (1920-1940), explodiram o jazz e o blues, que são, para James Cone (The Sprituals and the Blues), como Martin Luther King e Malcom X, duas faces de uma mesma medalha. A segunda medalha, no entanto, representa uma fase na história afro-americana de uma maior tomada de consciência de si (Selbstbewusstsein) e uma postura mais viril, mais audaz contra todas as formas de discriminação (Panteras Negras, Black Power...), como testemunham os motivos de James Brown – “Sou negro e orgulhoso de o ser”.



O rap (rhythm and poetry), iniciado na Jamaica, ganha expressão na década sessenta nos subúrbios negros dos EUA, verdadeiros guetos onde reinavam a pobreza, a violência e a droga. O rap nasce com um duplo propósito: desconstruir as verdades da mentira que perpetuam as injustiças e discriminações, mas também lutar contra a violência intraracial, canalizando a violência dos guetos através da sua sublimação artística.


Através do rap são desmistificadas as verdades construídas pelos dominantes e, por outro lado, os subalternos (Antonio Gramsci/estudos pós-coloniais) constroem narrativas e verdades alternativas sobre si próprios. Como tudo made in USA tem vocação para ser globalizado, o rap foi exportado e domiciliou-se em todas as periferias do mundo e subúrbios dos países. O nosso rapper maior apreendeu o rap na forma (estilo artístico e forma melódica), nos objectivos (denunciar as mentiras da verdade) e nos métodos (uma revolução com papel e caneta); e fê-lo com uma peculiar genialidade, aculturando a poética da sua música a razões e motivos moçambico-centrados, denunciando com vigor as imposturas, os dogmas impostos e a corrupção sistémica. Assim fazendo, tornou-se porta-voz das frustrações dos jovens e da sociedade.



Tal como os italianos ocupados pelos austríacos se identificaram com o coro dos escravos de Giuseppe Verdi e os jamaicanos no reggae de Bob Marley (stand up for your rights), assim também os moçambico-guetados, os que viajam nos my loves do qual certos ministros nunca ouviram falar, os deslocados, os que só têm três refeições nas estatísticas do Ministério da Agricultura, os que estudam em livros cheio de erros, os forçados a guerras, os desempregados e os sem futuro (…) reconheceram-se em Azagaia, o qual, antes de (e mais do que) qualquer e todo o sociólogo, cientista político ou filósofo, disse com Mutimati Barnabé João (poeta de outra FRELIMO) – “Eu, o povo”.



Azagaia representou a forma mais audaz e incisiva da crítica social em Moçambique. O seu repertório representa um chamamento para a desconstrução das verdades historicamente estabelecidas e é um manifesto para a necessidade de invenção de um novo regime de verdade pluralmente concordado, aberto à participação de todos e orientado para a solidariedade e para a justiça. A morte do rapper Azagaia levou para as ruas uma matula que deseja construir uma nova verdade para Moçambique e ver expurgadas as mentiras das verdades que sustentam o actual regime de segregação social (através do cartão vermelho), apenas velado.


Mas por que razão os motivos cantados há anos foram centelha para acender o descontentamento popular só com a sua morte? Lenine diria que foi porque estavam reunidas – em parte – as condições revolucionárias: com o povo a não suportar mais TSU(namis) de incompetência, e com o governo a responder às legítimas exigências de democracia, justiça e transparência com cães, gases lacrimogéneos e carros armados.



O que acontece quando aqueles que se supõe serem os garantes da Constituição (manual de procedimentos do viver comum) são os primeiros a violá-la? O que fazer quando aos meios democráticos e constitucionais de reivindicação de direitos legítimos o poder responde com ouvidos de mercador e/ou com uma violência ilegítima (Max Weber)? Quando as instituições (doentes e cancerosas) se demonstram inaptas a satisfazer as necessidades dos cidadãos e só são eficazes na limitação das suas liberdades e na sua repressão?


A tentação comum, e até aparentemente óbvia, seria responder que temos que recorrer à força e violência. Mas este – até do ponto de vista da nossa história – é um postulado demasiado óbvio para ser verdadeiro. Aliás, até parece que alguns necropolíticos (Achille Mbembe) querem deliberadamente provocar violência a fim de justificar a instauração de um regime ruandizado (autoritário) ou, pior, a fim de sudanizar (dividir) Moçambique.



Existe uma certa maneira de estar à distância, de tentar decompor ou de destruir o discurso da violência: é a essa tentativa que se chama Filosofia (Alain Glucksmann). Ela chega sempre tarde, mas, assim como a coruja de Minerva, ela, a sabedoria (isto é, o reconhecimento da realidade), abre as asas somente com o início do crepúsculo, quando as sombras da noite se estão a reunir. Por isso, o imperativo filosófico consiste em militar pela mudança do status situationis – sem sucumbir à violência – e realizar o ideal democrático da criação das condições para que o povo se autogoverne.


Numa hermenêutica simples, o que se pode depreender da poética de Azagaia resume-se a três postulados essenciais: denunciar as mentiras da verdade, fazer uma revolução com papel e caneta, e povo no poder.


A Filosofia sempre se esmerou em volta da busca da aletheia e da questão do quid veritas (adaequatio intellectus rei ou res ad intellectum): contra a falsificação consciente da verdade pelos sofistas de todos os tempos (já combatidos por Sócrates ), contra os cépticos, os relativistas, os historicistas – defensores da veritas filia temporis –, e sobretudo contra as ideologias das quais o neoliberalismo triunfante, que dá forma e legitima as práticas hodiernas do individualismo, do roubo e da corrupção, é o ultimo avatar.


A(s) República(s) de Diógenes, de Platão ou a Política de Aristóteles eram propostas de revoluções, como também o foram os tratados dos iluministas (Rousseau, Voltaire, Montesquieu) ou dos existencialistas (Jaspers, Sartre, Heidegger); mas tratou-se sempre de revoluções feitas, azagaianamente, com caneta e papel. E contra as revoluções guerreiras se levantaram o Hobbes do Leviatã, os idealistas no pós-guerra dos trinta anos (Schelling, Fichte…); e Kant, diante da violenta revolução francesa, que não sabia terminar, escreveu À Paz Perpétua. Aliás, as modernas constituições democráticas, com os poderes a contrabalançarem-se e a buscarem consensos (Kamana), nasceram para evitar que diferenças políticas, de percepção e de interesses se resolvessem de forma violenta.


Essas mesmas constituições colocaram o povo no poder. Não da Ágora grega, mas da representatividade política. Formalmente, estamos em democracia. O que está em causa é a natureza de uma democracia que (thatcheriamente/macronamente) não se sente obrigada pelo seu povo. É necessária uma revolução – não de primaveras árabes, pilotadas por interesses internacionais obscuros em conluio com actores locais, que se transformaram rapidamente em invernos árabes: com mais opressão e menos democracia –, mas uma revolução de mentalidade e posturas políticas que obriguem quem governa e as instituições a estarem em sintonia com a sociedade; trata-se de um batalha de postura e de mentalidade políticas.



Ainda não vimos a elite moçambicana a aceitar o desafio (democrático) é capim alto: parlamentares a dissociar-se pelo voto das políticas autocráticas dos próprios partidos, membros do(s) partido(s) que apresentem dentro e fora do partido o seu desacordo e dissensão para com as políticas do próprio partido; não vimos o Conselho Constitucional (fazendo evoluir a própria função) declarar a inconstitucionalidade de leis “grosseiramente” anticonstitucionais, ministros e secretários de Estado demitirem-se por desacordo com as políticas do governo, funcionários públicos recusarem participar nas células na função pública e pagar quotas; não vimos elites económicas e intelectuais a mostrar desacordo, não vimos associações do patronato, sindicatos (…) a dizerem “assim não pode continuar”.


E depois, se necessário, a Filosofia oferece modelos de resistência (desobediência civil) teorizados por La Boétie, Henry D. Thoreau, Tolstói e implementados por Gandhi, Martin Luther King e – durante um tempo – por Mandela.


Neste momento, o nosso maior problema é não termos – como Azagaia – “aquilo” no lugar. Deixemos de nos esconder por detrás dele para fugir à nossa cobardia. Estamos longe de ter esgotado os meios pacíficos sobre a necessidade de enveredarmos pela via do logos/verbum, do diálogo, da busca de compromisso e consensos. Apesar dos pesares, ainda temos largas margens de luta com caneta e papel.


Severino Ngoenha, Giverage do Amaral, Augusto Hunguana

  

“Apesar dos pesares, ainda temos largas margens de luta com caneta e papel”, Doutor? O que significa isso? Há alguma revolução feita por “caneta” além de “apontar”? Acha que Azagaia “apontou”? Mandela apontou? E mesmo Ghandi, com as bichas de seus discípulos que se ofereciam para serem violentados, era caneta a que estava a apontar? A “Filosofia” atrasou e não vai, também, fazer atrasar o que tem de ser feito se não pode parecer que (a Filiosfia) atrasa para evitar e quando chega é para atrasar e fazer evitar o que tem de acontecer. Ainda não “leu” o que o povo quer, Doutor? Pelo menos, não é de ser “divertido” por filosofias. “Ágora” (grega) ou “Agora” Povo no Poder. Quem teme o povo para adiar o seu agora por uma Ágora grega” o mesmo nunca agora” e não de “largas margens” (ou a longo prazo, decadas). O povo não precisa de mais ninguém senão de si mesmo e quem a ele se ajuntar deve ser para marchar com ele e não capitaneá-lo sob pena de se excluir e sentir-se mal.



Dionísio Vasco

9 horas atras · 0 curtida

  

Embora chegue sempre tarde, a filosofia (coruja da minerva) sempre chega para dar sentido o que se vive no tempo e no espaço.



Epifanio Benesse

9 horas atras · 0 curtida

  

Nos primeiros anos da nossa independencia, havia esperança de que até 1992 era o último ano no combate ao subdesenvolvimento no nosso país. A formação E ALFABETIZAÇÃO estavam sendo levados a sério, havia poucos recursos materiais nas escolas mas a vontade pela leitura era enorme. hoje quase 50 anos depois da independencia o sinal em todas as vertentes é a regressão, onde os estudantes durante um ano lectivo são inacapazes de ler no mínimo 50 páginas. logo, factualmente poucos estão em condições de fazer uma revolução usando a caneta (conhecimento), razão pela qual a politiquice prolifera em detrimento de uma toda comunidade.

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