Estou na Cidade de Xai-Xai, onde moro há quase 10 anos. Daqui onde pouso o corpo, consigo contemplar o azul do mar, o cheiro forte do sal, e o som miúdo das ondas, fazendo cócegas ao tempo. E as árvores abanam as cabeças como se concordassem com alguma coisa. Talvez este clima de pássaros e pedras no horizonte, o brilho indelével das algas perto da espuma, não de água, mas de uma entidade marinha que só esta praia tem. Digo, as mil mulheres caminhando como cavalos, os pés esculpidos à carne, tacteando a areia fina, que lembra barcos fora do poema.
Não estou sozinho, quase nunca estou só, embora precise de um momento para ler um livro ou escrever uma biata de verso, nunca é possível, tenho amigos que já se tornaram irmãos. E é com eles que divido a luz que teço nesta tarde de puro sol.
E mais que estar acompanhado por pessoas, tenho, não ao meu lado, mas dentro de mim, a nova música de Dynâmico El Capitine, uma espécie de quem tem o sangue a circular em suas veias, ou um fumo que sopra de um ângulo para o outro, dentro do crânio. Uma electricidade misteriosa acendendo todas as lâmpadas da minha cabeça.
E penso como a música pode embalar os artifícios do desassossego. Penso agora em como os versos se conjugam um depois do outro. E, crio uma parábola, não exactamente uma casa obscura, mas um caminho ao encontro da noite. Por isso coloco primeiro os móveis líquidos, depois vem o licor que me une a uma gargalhada que ensurdece jesus cristo. Penso agora em tudo, a música me arranca o pensamento, e anseio estar entre uma espada e uma lâmina, como quem está entre uma batida e outra.
Já Nirvana, penso entre uma mulher que se prepara para a lavra, o budismo ou a totalidade de tudo. E, essa figura feminina que se prepara para lavra como se preparasse uma criança para ir à escola logo pela manhã, ou uma refeição ou qualquer coisa que torna o fogo desta terra menos salgado, porque as mulheres, que se diga, são as catalisadoras do fogo deste mundo, por isso Deus até agora não decretou o apocalipse. E penso em Deus ser mulher, não que eu acredite, mas penso, tal como Elza Soares, Paulina Chiziane, ou Mia Couto em a confissão da leoa.
E, desfolho o refrão “Nirvana és melhor que a tempestade; és a luz desta arte. Eu te vejo em toda parte; no meu mundo em castidade.” Se evoca aqui o platonismo enquanto estado supremo da pureza. E se propõe Nirvana como a luz da arte, como se a arte fosse naturalmente um lugar/ tempo escuro e se precisasse dessa evocação para descortinar os signos da produção artística, esse ofício que Capitine se deixa transbordar paulatinamente ao longo desses últimos 10 anos.
Tenho um olhar que se iguala a monja Coen Murayama, da comunidade Zen-Budista, “O nirvana é um estado de paz e tranquilidade alcançado através da sabedoria”. A sabedoria como um caminho e não um fim, de eterna trilha, que se vê distante e ao mesmo tempo perto. E, a música, o elemento que tece esta tarde toda, que já vai noite, repito-a no silêncio. Já o dizia Pitágoras que o princípio da sabedoria é o silêncio. Por isso busco na arte não a inteligência, mas a sabedoria da sensibilidade, o conhecimento sentimental das coisas.
Tudo vem com as ondas do rádio, os vários sons, uma guitarra afinadíssima, evocando Nietzsche, e lembrando-me de mim mesmo e de tantos os outros que “cresceram sem poemas e prosas/ atrás de bois a puxarem carroças”
mas com essa força de ganhar a luz com os versos de Drummond de Andrade, e “eu não sabia que minha história/ era mais bonita que a de Robinson Crusoé”.
E, o sol quase se põe por aqui, já um pouco de frio vem do mar, preciso voltar à casa, pego um Chapa até o Cruzamento e ando uns 10 minutos e é tudo. Mas só penso, e gostaria de pensar o que estou a pensar agora, é distante o lugar onde penso o que penso. Por isso passam-me imagens de Tupac Amaru Shakur, John Legend ou Gary Clark Jr., como uma faca passa em uma maçã madura.
Otildo Justino Guido
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