«Andas com a cabeça a roçar os céus, Miguel» disse o professor enquanto tentava enclavinhar os ombros e os papéis grisalhos entre o canto da sala e a onda fina da chapa de zinco. Havia chuva sobre o tecto e o chão ensopava-se convulsivamente. «Tenho uma estrela… uma, duas, três…E brinco com elas uma de cada vez» retorquiu ele ainda naquele jeito evasivo de meninice. «Isso ¬é poesia…e tu não vais continuar a brincar os versos». Contestou o professor maravilhado e enternecido. Faltava a intimidade – uma coisa de difícil achar entre um poeta e um vulgar [termo que ele mesmo, em contextos de ensino de aulas de literatura empregava para designar a todo Ser destituído de sensibilidade artística. Sim. Chamava ele de VULGAR. Para ele um Ser humano tinha que ser poeta e/ou viver à poesia. Bastava-lhe isso só para fiar uma conversa…uma conversa sem rabugices]. O meio já não permitia para continuar com as abrangências. E socorreram-se eles naquele canto para desferir aquilo que comummente se chama de LOUCURA. «Foi muita adulação ao chamar aquilo de poesia, Mestre». Refulgia nas ombreiras do céu a última lua num decote de uma boina embriagada. Vestira-se há comenos duma nuvem grisalha que fitada entre as ondas das chapas parecia uma lua noivada de olhos frémitos. Os seus passos pareciam dois sustenidos paralelos cambaleando num estrado de acordes translúcidos numa régia ceia dominical entre dois planetas por conquistar. «Não sabes o que dizes, Miguel, e perdoo-te entanto. Muitos ignoram isso. De que a infância é o nosso lugar de iniciação artística – o degrau primário de polimento dos sentidos para captar aquilo que de poesia o mundo nos oferece» disse o professor enquanto recompunha os óculos no lugar merecido. «Espera. Acho poesia no que dizes. Falas a difícil como esses poetas. E vacilo que estejas a falar sozinho.» Disse, o Miguel, hesitante, enquanto devolvia as sobrancelhas e os pavilhões à atenção. «Tens que entender que a literatura é imitação pela linguagem, assim como a pintura é imitação pela imagem. Enquanto imitação pela linguagem, o texto literário distinguir-se-á do texto não literário. Ou seja, o texto literário evidencia-se pela autonomia da palavra, i.e., ele desprende-se do uso trivial da palavra, do acto verbal – a obra literária detém-se numa linguagem poética, aquela que encontra uma justificativa em si mesma; ela é seu próprio fim, então autotélica. No texto não literário, há uso comum da linguagem, i.e., trata-se do sistema de linguagem prática que se prende na representação linguística fiel, e entretanto, não autónoma, presa na relação signo-significante, portanto meio de comunicação, então heterotélica». Deu uma meia pausa e enrolou a cabeleira que a achava penteada para o desgosto e aliviou o peso da perna noutra a mordiscar a extremidade esquerda do lábio inferior. Continuava a chover com a lua embutida no negrume rude. «Então queres dizer que o poeta ao produzir um texto literário, fá-lo com recurso a um código?» desequilibrou-se Miguel. «E é com recurso a esse código que o leitor deve se basear para interpretá-lo. Mas olha que isso não é o suficiente. É preciso associar a criação literária às mundividências do leitor, às suas experiências oferecidas pela vida.»
«E falavas do lugar de iniciação artística – o degrau primário de polimento dos sentidos da arte…» □ «Sim. À semelhança de qualquer habilidade, a arte também ganha as suas bases na infância, na adolescência, i.e., na idade tenra. É aqui onde o individuo afia a sensibilidade artística e o prazer estético; aprende a achar beleza nas pequenas coisas que a vida oferece; apropria-se dos símbolos da arte; aguça a imaginação e a abstracção; interroga-se sobre tudo; ganha o amor com as palavras, deixa elas fazerem parte da sua vida e começa a encará-las como coisa vital e a pensar a língua e o mundo de forma autónima e peculiar. É preciso que se entenda que a poesia é feita de linguagem, imagens e ritmicidade que se subordinam ao conteúdo – mas sobre a relação entre a forma e conteúdo falaremos noutras abordagens. E as imagens são elaboradas com recurso ao conhecimento simbólico tradicional que veicula o sentido da obra de arte. E tu, Miguel, ao dizeres que tens uma estrela te referes a um sonho e quando enumeras e por fim confessas que brincas com elas uma de cada vez, aludes a infância como lugar do sonho sonhado, da ilusão não frustrada, onde tudo é possível, onde damos tudo sem a sensação de perda e o que não recebemos não nos frustra simplesmente porque nunca foi nosso materialmente senão no sonho, e sendo o sonho algo singular e que não se perde, então inocentemente não se acha a razão da frustração». □ «Parece-me isso tudo difícil de compreender na poesia…» fez-se Miguel novamente indignado. É preciso apropriar-se dos elementos basilares da arte…e submeter as crianças num caminho sem volta e sem tédio nem arrependimento da arte. Veja, por exemplo, a Ema entregou-se a um devaneio espacial e achou uma vida sem medo nem dor; a Celdimira mergulhou a cabeça na lua através da imaginação e da abstracção e achou enlevo e ganhou a vontade de viajar juntamente com a lua quando a alvorada lhe roubou as sensações. A Elena jogou-se de cabeça ao jogo das sensações e viu-se flutuando entre o brilho das estrelas e a beleza dos planetas e com as percepções viu cometas. Apropriou-se das paisagens lunares e quer ter uma cabana e um baloiço que abana como refúgios para escapar deste mundo sujo e ir pro espaço onde tudo se pode; Com a imaginação, Manon, foi longe e chegou onde nenhum filósofo ou teólogo pôde, renegou toda a tradição filosófica e teológica e reduziu o ser humano ao nada e a um pó espacial tentando encontrar o caminho de volta sem ponto para chegar; doutro lado, a Chelcia, tão realista, percepcionista e sensacionista, encara a vida como um esquartejamento e poetisa a mendicidade humana causada pela carência de tudo e descobre a lua como lugar de refúgio». □
«Tal como vês, Miguel, a lua é o reflexo do sol, dependência e princípio feminino, transformação renovadora, tempo que passa, medida dividida por fases, passagem da vida à morte e da morte à vida, conhecimento indirecto, discursivo, progressivo. Evoca metaforicamente a beleza e também a luz das trevas. Entanto, nas mãos dos infantes que lograram a iniciação artística, este símbolo é desdobrado o sentido e ganha o valor do sonho, do lugar de conforto, da realização e sobretudo de refúgio. Aliás, todo espaço infinito do universo é visto como espaço de superação». □
«Hoje, Miguel, à semelhança do Lorde, aprendeste aquilo que os outros adolescentes que brincam na rua não aprenderam: que com a imaginação, com a abstracção e com a sensibilidade artística podes melhor brincar; que com esses artifícios podes experimentar prazeres que a vida dos factos não pode oferecer; aprendeste também que o mundo dos factos é triste e bizarro e que com a cabeça na lua podes seguir em frente levantando-se sempre que tropeçares».
O céu deu a última ejaculada e soluçou. Ouviu-se sobre o tecto de zinco três gemidos cheios de satisfação – dizem que Deus dá água em função da sede. Abriu-se a cortina do alto azul enxovalhado – faltava ainda falar da Arte e Sociedade para os aprendizes da arte, tema que levantará discórdias.
Por Harani Mahalambe
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