“Alguns
livros são imerecidamente esquecidos,
nenhum
é imerecidamente lembrado”, Frederich Nietszche
“Catorze
mil versos de sermões assim, quem poderia lê-los sem desmaiar de cansaço ou de
sono? (…) nada faltou a Dante senão um bom gosto e discernimento na arte”,
lê-se nas cartas virgilianas (1758) escritas pelo douto jesuíta Saverio Bettinelli
(apudECCO:2007) sobre a Divina
Comédia. Por ocasião da morte do poeta Baudelaire, o escritor francês Émile Zola escreveu “dentro de cem anos Les
Fleurs du mal serão apenas recordadas como uma curiosidade”. Já the London Critic (1855) chegou a
afirmar que “Walt Whitman tem a mesma relação com a arte que um porco com a
matemática”. Mediante tais observações desagradáveis dos críticos literários
renomados daqueles tempos, quem dos consumidores de literatura ousaria
protestar e prever o sucesso desses autores clássicos sem ser tido como ridículo?!
Entretanto,
ao longo do tempo, o belo da arte dos autores supracitados prevaleceu sobre a
crítica mordaz de quem naquele tempo afigurava-se uma autoridade da literatura. Como se explica essa estranha imortalidade de
certas obras literárias que sobrevivem ao tempo e à crítica dos maiores doutos
da arte? Se calhar fosse o caso para dizer-se que o valor estético não é
definitivamente relativo quanto ao tempo e espaço, como convencionalmente se
pensa. Ou talvez tenhamos de aceitar o aspecto óbvio de que toda a obra de arte tem um valor intrínseco, por conseguinte, não carece de nenhuma validação do
crítico literário. Aliás, o real papel dum crítico literário é lançar a luz
sobre o enredo textual, descortinando a graciosidade da sua estrutura, a
problemática do seu tema e as implicações do seu assunto sobre a nossa actual
condição humana.
Ainda
retomando o questionamento do relativismo do belo artístico, se concordarmos
que a literatura é um meio de narrar nossas imaginações, sentimentos e
pensamentos da maneira mais bela possível, e o belo é um valor estético que
varia em cada época, como se pode responder ao facto de, por exemplo, a
Odisseia e Ilíada de Homero granjear admiração desde antiguidade grega até aos
nossos dias? Mostra-se, deste modo, necessária a compreensão de que a
literatura seja imbuído doutros valores e interesses, além do belo na sua
forma. A ideia de que a literatura seja bela, mas inútil já não é mais uma
conclusão convincente num debate sobre o poder da arte. Houve tempo em que se
mostrava conveniente defender-se a ideia de fazer-se arte pela arte, ou seja
uma arte totalmente desinteressada, de tal maneira que ela não sucumbisse ao
moralismo social, político e, ou, religioso. Porém, sujeitar-se a arte a esse
sacrifício de inutilidade afigura-se-me um auto-engano de quem assim a
sentencia, pois ela jamais se revelou inútil ao mundo. A arte, especificamente,
a literatura, em seu modo desinteressado e ficcional, sempre sugeriu as
virtudes da vida, sem precisar de dize-las ou defini-las.
O
desafio que se nos impõe a todos nós como consumidores da arte é a capacidade
de interpretação. Na literatura assim como na própria vida é disfuncional o
adágio de que “contra factos, não há argumentos”. Esses dois mundos, um
carregado de ficção e outro de realidade, têm a mesma exigência de
interpretação que é um exercício em busca do sentido das coisas. E quando a
literatura, em particular, assim o exige, ela torna-se o objecto do pensamento,
porquanto o acto de pensar configura-se como este exercício (inexorável) em
busca do sentido. Por essa razão, pode atribuir-se à literatura a função primordial
de instigar a reflexão sobre a condição humana. Haverá outras funções não menos
importantes nas quais se destaca a catarse,
empatia, autorreconhecimento e autossuperação perante modelos regenerativos e
degenerativos fornecidos pela literatura.
Diria
que a função primordial da literatura que é de provocar pensamentos despoleta automaticamente
funções secundárias, algumas delas já supramencionadas. A múltipla
funcionalidade dos textos literários tem a ver com a própria natureza da
literatura que é miscelanicamente holística.
Ou seja, a literatura configura-se como um conhecimento que aborda a
vida em quase todos os seus aspectos. Diferente das ciências que tendem a
compreender a vida num só ângulo, como a psicologia o faz, focando-se em
reacções comportamentais, a sociologia em relações sociais, a biologia em
termos da funcionalidade dos órgãos, a literatura não fragmenta, apresenta-nos
a vida sob influência de vários aspectos, incluindo os principais aspectos
biopsicossociais.
Sendo
assim, a literatura mostra-se a ferramenta mais aprimorada e completa em
relação às ciências para compreensão da vida. Entretanto, a sua anomalia
benigna consiste em ser incapaz de definir ou sistematizar, mas apenas contar,
descrever e insinuar. Jamais a literatura ousará definir com logicidade o que é
amor, mas atrever-se-á a contar alguma coisa sobre este sentimento, tal como o
faz com a justiça, a morte, a dor, a solidão, a amizade, a crise existencial, etc.
E a sua glória reside especialmente quando ela fala desses elementos, sem ter
de se impor como uma autoridade do saber, mas o fazendo com a beleza das
palavras, a metáfora dos sentidos, a originalidade do estilo e a coerência das
ideias. Ao todo, julgo serem esses elementos que tornam a obra literária
agradável e memorável de ler-se. Perdendo-se a beleza das palavras, a obraliterária torna-se seca ou entediante de ler, dificultando a compreensão das
metáforas. Com a escassez das metáforas, a obra literária mostra-se pobre na
matéria de imaginação e dessensorialização do mundo físico. E a ausência da
originalidade do estilo faz da obra um elemento totalmente confundível. A falta
da coerência das ideias deixa a obra literária desprovida do pensamento. E sem
pensamento, não há significado. Sendo assim, todas as razões para que obra literária sobreviva ao teste do tempo tornam-se nulas.
A
ideia de que a imortalidade da obra literária seja, em grande parte, garantida
pelo pensamento fundamenta-se com a própria natureza do pensamento que é
intemporal. Todo e qualquer pensamento tem a tendência de tornar-se universal,
não somente pela sua constituição lógica, mas pelo seu poder de abstração. Ou
seja, todo o acto de pensar envolve abstração que é o processo que permite a
mente descurar-se da realidade sensível e passar a lidar com as formas e
conceitos. E, ao contrário das impressões que variam de acordo com o tempo e
espaço, as formas e conceitos mantêm-se inalteráveis de tal modo que, por
exemplo, se alguém nos fala da árvore ou montanha, não precisamos de
lembrar-nos da primeira ou última árvore ou montanha que a gente viu no mundo,
mas chegamos ao entendimento do enunciado, pois dispomos do conceito e forma
destes dois elementos independentemente do tempo e espaço em que estivermos.
Deste
modo, a glória da literatura sobre o tempo deve-se basicamente ao pensamento fundido nela de maneira inobjectiva e sob os condimentos estéticos.
Normalmente, o pensamento dentro das obras literárias revela-se-nos através das
famosas lições morais que desde os tempos do ensino primário éramos obrigados a
retirar dos contos e poemas. Obviamente que haja mais lições que se podem tirar
dum texto literário, mas a ideia duma lição moral configura-se como aquele
valor que se aprende duma experiência para toda a vida. Por conseguinte, um
livro com uma lição moral tem asas para desprender-se duma experiência limitada
pelo tempo e espaço rumo ao universo metafísico. Tratando-se da literatura, é
preciso que essa lição moral (pensamento) tenha sido estabelecido num exemplo
indutivo (poema, romance, conto, etc) adornado de elementos estéticos inéditos.
Sem os elementos estéticos, corre-se o risco de, no lugar da literatura, ter-se
um livro deformado de filosofia, um ensaio científico ou uma auto-ajuda
totalmente desprazerosos (ou pouco prazerosos), mas úteis de lerem-se. Se
calhar, seja essa a grande diferença existente entre a maioria dos best-sellers
e a maioria dos escritores talentosos, porém menos populares. Ou seja, quem lê
Paulo Coelho ou José Rodrigues dos Santos, best-sellers lusófonos, pode notar
que nas suas obras o nível de erudição supera o domínio estético da língua, enquanto
escritores como Ernest Hemingway, Ungulani Baka Khosa, Mia Couto ou Machado deAssis procuram manter equilíbrio entre a estética da palavra e a erudição, um
exercício tão imperfeito em que o domínio estético da palavra se mostra
normalmente avantajado em relação à erudição.
Entretanto,
quando o domínio estético da língua suplanta a erudição, a obra literária tem
menos chances de sobreviver ao seu tempo, pelo facto de não ter nenhum valor a
transmitir a novas gerações, senão experiências corriqueiras que, embora
contadas de maneira requintada, não agregam nenhuma lição ao desenvolvimento da
consciência humana. E quando é a erudição a suplantar a dimensão estética da
obra, ela tem relativamente mais chances de sobreviver ao teste do tempo, pois
apesar de ser uma obra austera na beleza da palavra, ela torna-se útil à
humanidade pelo conhecimento e reflexão envolvidos na sua composição. Todavia,
tal obra jamais vai ser considerada uma referência literária, mesmo que seja
enquadrada na estante da literatura, pela razão de ter-se descuidado
consideravelmente dos elementos estéticos que causam fruição na leitura. Deste
modo, para imortalidade duma obra literária, em stricto sensu, é necessário um meio-termo ou equilíbrio ainda que
não perfeito entre o pensamento e a estética da palavra. Quando um se sobrepõe
gravemente sobre o outro, ou viola-se a imortalidade da obra ou dissolve-se a
literariedade da mesma. Para uma intemporal obra literária urge sempre a união
entre o útil e o agradável, parafraseando o poeta romano Horácio.
HélderTsemba
Email: tsembah@gmail.com
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