Se as ruas do seu bairro pudessem
falar, contariam uma história de asas roubadas, de corpos catalogados e de um
coveiro que enriqueceu com o fracasso da esperança. É este o convite brutal que
Miller A. Matine nos faz em "Brogúncias do Meu Bairro" (2015).
O título, que promete apenas as
"brogúncias" (as pequenas trivialidades do quotidiano), é uma ironia
cortante. O que o autor nos entrega não é um passeio despretensioso, mas sim um
tratado existencial disfarçado de crónica urbana, um mergulho corajoso no negrume
existencial que viceja nas entranhas da nossa vida citadina.
“Três Livros em Um”
A obra não se revela de imediato. A sua
estrutura de tripartida: livro 1, livro 2 e livro 3, é a primeira pista para a
desordem social que este denuncia. Esta não é uma divisão casual; é uma
metodologia que permite a Matine atacar a alienação em três diferentes planos
de profundidade, com cada "livro" a funcionar como uma lente
complementar, construindo o argumento da obra por etapas:
- Livro 1: O catálogo alfabético de almas. (O
plano social e erotismo ferido);
- Livro 2: A crónica da contradição. (O plano
narrativo e a crise da amizade);
- Livro 3: O manifesto aforístico. (O plano
filosófico e a condenação capitalista);
Este uso da fragmentação organizada é,
em si, um comentário à vida moderna: o ser é desintegrado em partes desconexas,
catalogado e submetido a um moinho sem sentido.
“Livro 1”
O livro 1 (págs. 22-61) é a cartografia social da obra. O autor usa o
rigor do alfabeto (A a Z) para catalogar as personagens (maioritariamente
femininas), que constituem o tecido do bairro.
Esta estrutura alfabética é a crítica
não-óbvia de Matine. O autor está a catalogar a sexualidade e as relações como
se fossem espécimes em exposição, despidas de romance e reduzidas à sua função
social ou biológica.
As mulheres, neste labirinto
alfabético, são descritas através do prisma da percepção social, do rumor e da
troca. O erotismo, portanto, não é aqui celebração, mas transação e evasão
melancólica. Julieta (pág. 37), é o sonho romântico desfeito pelo pragmatismo
da sobrevivência; a "borboleta" que teve de se prostituir para
"manter os filhos da Justiça".
O corpo feminino, no bairro, é um
recurso, como se observa em Fátima (pág. 32), a mulher cuja função parece ser a
de ceder o útero para o bairro.
A tragédia da paixão é o fracasso da
instituição, ecoando as grandes crises conjugais de Liev Tolstói por exemplo,
pois as relações são apenas um artifício para esconder o vazio.
O livro 1 estabelece o cenário de base,
um ambiente onde o amor é luxúria e a vida é um catálogo de misérias que os
homens, como Lepidoptero, não conseguem alterar.
“Livro 2”
O livro 2 (com crónicas como
"cans" e os diálogos de "doctor") funciona como uma
ampliação dramática dos temas do Livro 1. Sai a rigidez alfabética, entra a
narrativa, permitindo a Lepidoptero (ou personagens com o mesmo vazio)
interagir mais longamente com o mundo.
Aqui, o autor explora a crise da
amizade e da moral. As personagens, como Azarias e Nambalhássa, são apanhadas
em dilemas de lealdade e sobrevivência. É o livro que nos mostra que a
alienação não é apenas uma condição mental, mas um veneno que destrói os laços
mais elementares.
O diálogo com o "doctor"
(págs. 74-75) sobre a mulher revela a
podridão moral que Lepidoptero precisa de diagnosticar.
O livro 2 conecta o catálogo de almas
(livro 1) à acção falhada, mostrando que a lucidez do protagonista não o salva
da inação, uma característica que o liga ao Homem do Subterrâneo de
Dostoievski.
“Livro 3”
O livro 3 (crónica de Naváico,
aforismos e epílogo) é a conclusão filosófica do Matine. É o livro que dá voz
ao autor-ensaísta que existe dentro do cronista.
“A Crítica ao Capitalismo”
A crónica de Naváico (págs. 94-99), o coveiro que enriqueceu com
a miséria, é a crítica social mais incisiva. Matine inverte
o conceito de sucesso, denunciando que, no seu bairro, o sucesso é sempre
parasita, provando o aforismo: "Nesta porra enfastiada pelo capitalismo,
nada é fácil. Nem o viver nem o morrer" (aforismo 115, pág. 88). O
capitalismo, no fundo, tributa até a morte.
“Aforismos Finais”
Os cerca de 150 aforismos (págs. 76-91) são a destilação mais pura do
pensamento do autor. É a forma que ele encontra de cortar o discurso e
entregar a verdade em estilhaços de filosofia: "A tua vida não é de
ninguém para seres camelo de alguém" (aforismo 77, pág. 83).
“O Epílogo”
O epílogo (págs. 100-101) é o momento em que a obra
se defende, afirmando que alcança o "discurso de uma retrospectiva mundial
irreal". O autor assume que o livro é uma meta-crítica da
realidade, onde o local (o bairro) é usado para atingir o universal.
O livro 3 funciona como a sentença
final da obra. É ele quem transforma o catálogo (livro 1) e as crónicas (livro
2) num manifesto existencial, selando a tese de que a humanidade é sinónima de
tormento.
“Lepidoptero, o ser que devia voar”
O cerne do projecto de Matine reside na
sua personagem, Lepidoptero. A escolha do nome é a própria chave da tragédia:
um insecto que devia ter concluído a sua metamorfose e voar, mas que se descobre
"triste e cheio de nada" (pág. 17). As suas asas, conta a sinopse,
foram "desenhadas e pintadas por forças sociais", roubando-lhe a
essência. O problema aqui não é primariamente económico, mas metafísico, um
indivíduo cuja identidade é imposta pelo meio.
Lepidoptero não é apenas um pobre
coitado; é a encarnação moçambicana do Homem do Subterrâneo de Fiódor
Dostoievski. Ambos partilham o mesmo rancor existencial, o cinismo e a
incapacidade de agir. O Lepidoptero vive sob o signo da dor lúcida, clamando
por um abraço que seja "doce e amargo por que o mundo respira e transpira
de contrários" (pág. 35).
Ele não quer a redenção; ele quer que a
sua miséria seja reconhecida. É a dor de quem sabe que a única cura para o
sofrimento, segundo o próprio autor, é o esquecimento da condição: "O que
o esquecimento seja a nossa saúde — nós, os enfermos" (aforismo 129, pág.
89).
“O catálogo do desejo e o erotismo
ferido”
A vertente mais íntima e reveladora do
livro reside no livro 1, o catálogo alfabético de almas. O erotismo, portanto,
não é aqui celebração, mas transação e evasão melancólica. O autor questiona:
"Amor, luxúria, ódio, alegre-amor, triplobloqueado, lúpulo. Como pude ao
teu amor aspirar?" (aforismo 31, pág. 76).
A sexualidade chega a ser uma mistura
intragável que culmina no fracasso da relação.
“Naváico, o coveiro capitalista e o seu
estilo cortante”
Naváico enriqueceu com os
"serviços" fúnebres dos mortos-vivos do bairro, onde "o sistema
de saúde precário" é a garantia do seu negócio (pág. 97). Matine denuncia
que, no seu bairro, o sucesso é sempre construído sobre a desgraça alheia.
O estilo de Matine não flui; ele corta.
O autor usa a técnica de desconstrução para desmantelar o discurso oficial. A
linguagem é uma mistura de erudição e crueza que reflecte a realidade
fragmentada. O livro não é um romance, mas um diário caótico da alma, onde a
desorganização é propositada. É a forma de Matine dizer que a realidade do
bairro é tão absurda que só pode ser contada através de pequenos estilhaços de
verdade filosófica.
Matine usou a sua arquitectura de três
livros para elevar o local (o bairro) ao universal (o "estado-limite"
da experiência humana).
“Se há pontos fracos!? Há, como o
excesso de cinismo e o pedido de aplausos”
Como crítica, é imperativo abordar a
robustez com honestidade. O ponto fraco de "Brogúncias do Meu Bairro"
reside na sua própria intensidade. A profusão de aforismos e a sucessão rápida
de vozes, sem a âncora de uma narrativa contínua, tornam a leitura, por vezes,
exaustiva. O leitor sente-se, por vezes, atropelado pelo cinismo do autor, sem
o espaço para respirar a dor. A obra corre o risco de ser excessivamente
“cynical” e menos humana.
Contudo, é nessa escolha pela crítica
radical em detrimento do conforto narrativo que reside a sua força e a sua
originalidade.
"Brogúncias do Meu Bairro" é
um livro que se assemelha a uma crónica filosófica pós-colonial, onde o
desenvolvimento urbano e social apenas trouxe uma nova forma de prisão: a
alienação da alma.
O autor, com a sua arquitectura de três
livros em um, oferece um espelho brutal e honesto. A sua capacidade de
transformar a pequena tragédia do bairro numa interrogação universal sobre o
sentido de ser, o erotismo ferido e o fracasso existencial, torna esta obra
leitura obrigatória.
Miller A. Matine, na sua crueza poética
e no cinismo do seu Lepidoptero, reside a verdade que a nossa literatura, em
Moçambique e além-fronteiras, precisa de confrontar. O livro é o mais íntimo e
honesto diálogo sobre o que realmente significa ser um "ser alado"
cujas asas foram roubadas.
por: Paula Cristina
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