"O Retrato dos Demónios", de Naji Sacaúnha com selo editorial da Massinhane Edições, é uma obra que se insere no género de ficção especulativa e oferece uma experiência literária imersiva, onde o sobrenatural e o real se entrelaçam de maneira visceral. A narrativa, centrada na figura de Maria, leva o leitor a uma jornada sombria e introspectiva, permeada por angústia e mistério. O autor constrói um universo denso, em que a vida e a morte coexistem e se entrelaçam como parte de uma única experiência contínua, como ilustrado pela protagonista: "Para mim, a morte é a coisa mais natural que se pode receber da vida" (p. 23).
Desde as primeiras páginas, Sacaúnha envolve o leitor em uma atmosfera carregada de tensão psicológica. O tom contemplativo da protagonista é reforçado pelas descrições poéticas e, muitas vezes, filosóficas do autor. A solidão e o desespero que dominam Maria em várias passagens evocam um profundo senso de introspecção existencial. Isso é especialmente notável em cenas como a do amanhecer, onde Maria, embora cercada pela beleza da natureza, sente-se presa a seus demónios internos: "Almejava estar na cama deitada como uma meretriz à espera da próxima noite, com os olhos fartos de pecados e o coração pesado de inconfessões" (p. 14).
Ao longo do livro, o autor reflete sobre a efemeridade da vida e a inevitabilidade da morte, temas que ecoam as ideias de autores como Albert Camus e Edgar Allan Poe. A reflexão da protagonista sobre a vida como um processo único, do nascimento à morte, traz à tona uma visão quase fatalista da existência: "Do nascimento à morte, a vida flui como uma gota de chuva, segue uma órbita única sem se transviar" (p. 15). Essa visão, semelhante à de Camus, sugere que o sentido da vida é encontrado no próprio ato de viver, mesmo que este seja inevitavelmente conduzido à morte.
Além das influências filosóficas, há uma clara ressonância com o estilo de Edgar Allan Poe, especialmente na construção do ‘suspense’ e do terror psicológico. A descrição do ambiente como um reflexo da psique da protagonista — "Ficava desorientada enquanto tentava adivinhar a voz que me interditara de entrar no barco" (p. 33) — cria uma sensação de isolamento e vulnerabilidade que é central ao desenvolvimento do horror na narrativa.
Oscar Wilde, citado no prefácio da obra, afirma que "não existem livros morais ou imorais. Os livros são mal ou bem escritos". A citação serve como uma introdução apropriada ao mundo de O Retrato dos Demónios, onde Sacaúnha desconstrói a moralidade tradicional. O autor apresenta demónios não apenas como entidades externas, mas também como representações dos conflitos internos que atormentam a protagonista. O mensageiro da morte, por exemplo, não é um vilão convencional, mas uma figura enigmática que desafia Maria a confrontar as verdades da sua existência. Quando ele anuncia: "Sou o mensageiro da morte" (p. 53), a morte deixa de ser uma ameaça e se torna um estado a ser aceito e compreendido.
A estrutura narrativa do livro é rica em simbologia e construções imagéticas, o que torna a leitura visualmente envolvente. A passagem que descreve a natureza e os astros, por exemplo, é notável: "Fascina o nascer de uma estrela no horizonte... Para lembrar-nos que os processos têm etapas, e cada etapa, sua descrição" (p. 15). Sacaúnha usa a natureza como uma metáfora para o ciclo da vida, lembrando o leitor de que, assim como os astros, a humanidade também segue um curso inevitável.
A influência de autores surrealistas também pode ser sentida em várias partes do livro, especialmente nos sonhos de Maria, que frequentemente borram as fronteiras entre o real e o imaginário. Um exemplo disso é quando ela descreve suas experiências com demônios e seres sobrenaturais: "Surgiam-me da mente imagens inócuas que, a princípio, eram muito vagas e imprecisas, mas que ganhavam forma e vida. Sonhava." (p. 27). Tal abordagem lembra o estilo de Kafka, onde os personagens são arrastados para cenários absurdos e opressivos, refletindo suas angústias internas.
Conclusão
"O Retrato dos Demónios" é uma obra que desafia o leitor a explorar os limites entre o físico e o espiritual, entre a vida e a morte. Naji Sacaúnha combina elementos de ‘suspense’, terror psicológico e filosofia existencial para criar uma narrativa rica e envolvente. A escrita lírica e a profundidade emocional fazem deste livro uma leitura intensa, que permanece com o leitor muito depois de virar a última página. Como Wilde sugere, a obra não deve ser julgada por sua moralidade, mas por sua habilidade de nos prender e provocar reflexões, e nesse aspecto, Sacaúnha se destaca.
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