As doze varas
Falemos
da arte como lugar de (re)encontro d’uma colectividade; como expressão d’uma
interioridade trans-individual. Aquele lugar onde o pulmão cultural ganha
fôlego. Pulsa com a força d’um condor bravo ou d’um tornado. Aquele lugar onde
cada um de nós se encontra representado; aquele lugar que por metáfora é o
porto de todos os navios. Falemos dela como património da humanidade que lega
gerações. E se a consideramos como tal, então que a abordemos com maior
sensibilidade e sinceridade, i.e., sem ares de nepotismos, de deixa andar e
etc.
A casa da arte está sob assalto; está em chamas.
É nesta
maneira de conceber a arte que gostaria de recordar e defender “O Excedente
Estético: a Readymadezação da «Nova Arte»” das críticas que sofreu daqueles que
foram assolados por um estado de susto-reactivo:
Primeiro,
acusaram-no de possuir um espírito de polemização e redução do labor de
escritores cujos nomes e trabalhos foram galardoados e cimeirizados (logo, talvez,
intocáveis e irrepreensíveis), para além de não possuir indicadores de
possíveis vícios que desqualifiquem as suas obras – eis que me dou o prazer de
trazer à superfície tais indigestos;
E, em
segundo lugar, foi acusado de estar a desvalorizar o trabalho d’uma geração,
pois não possui um teor de acarinhamento de novos talentos que começam a
publicar a partir do segundo milénio, para além de carregar uma saudade de teorias
e estéticas alheias do tempo e do espaço.
Eles
não precisam de acarinhamento, até porque ninguém os pede para escrever, pois a
escrita é um exercício de consciência, de mentalidade e de sensibilidade. A
escrita trivial deve ser combatida aos extremos, pois atenta a indústria da
arte e por metonímia banaliza-nos perante o mundo. E os críticos, enquanto
guardiões da arte, devem fazê-lo com imparcialidade, honestidade e
destemidamente.
Longe
de banalizar uma geração, O Excedente
Estético é uma denúncia da qual cada um de nós, no momento mais silencioso
da sua madrugada deveria reflectir e tomar um posicionamento comprometido com a
arte e permitir-se a uma resposta mais sincera e destituída da ambição de ser
escritor, à pergunta de Rainer Maria Rilke
segundo a qual “preciso escrever?”. E neste «ciclo de diadema trivial»,
apoderando-me do conceito mais acertado de Jeremias Jeremias, os editores têm a
maior parcela de culpa.
Há que distribuir os males pelos
bairros: Massinhane edições, Kulera, Zambeze editores, Alcance editores e
recentemente a editora Fundza (com as chamadas literárias), são algumas amostras
de editoras que destituídas de critérios sérios e severos de selecção de obras
que mereçam ser publicadas, proliferam lixo literário, movidas, quiçá, pelo
espírito capitalista e pela vontade de realizar sonhos. Não se sonha ser
escritor. Ou se é artista ou não se é. É tudo uma questão de sensibilidade. Não
de sonho.
Permitam-me
retomar as três perguntas de reflexão que constituíram andaimes para a
edificação d’O Excedente Estético:
(i) é possível uma arte que inspirada nas correntes literárias do passado
encontre um novo desdobramento em função do nosso contexto social e temporal?;
(ii) uma arte que não só nos conecte ao mistério profundo da existência, mas
também se interrogue sobre o presente histórico subsequente sem com isso
quebrar a categoria do belo poético?; e (iii) uma arte de uma articulação
coerente e completa da “visão do mundo”, logo como criação das estruturas
trans-individuais?
A
poesia está febril! Salvo alguns casos bem achados. É difícil escrever poesia
num país como o nosso de grandes poetas como Rui de Noronha, J. Craveirinha, E.
White, L.C. Patraquim, V. de Lemos, Heliodor Baptista, Rui Knofle, Rui Nogar,
entre outros – figuras que ao lê-las se pode achar um discernimento e
sacerdócio sobre a criação poética; sobre como escrever um poema que valha a
pena publicá-lo.
Poetas
como: Deusa d’África em A Voz das Minhas
Entranhas, como se pode ler «malditos crocodilos/que atacam outros
crocodilos, irmãos!/quando tentam fugir do rio, sem deixar rastos, (p.32)»; Elísio
Miambo em Retroalimentações do Ego «ontem,
homens colectivamente inconformados/ devastaram matas, arriscando o que não
tinham/em seus cérebros, nem peitos doloridos/para trazer um 25 de Junho que
tanto desejaram, (p.27)»; Lino Eustáquio em Poeta
Ambulante «oiço ao longe delírios e clamor de gente padecendo de fome/os
lares são autênticos hospícios/morre-se de fome ao invés da Covid-19, (p.17) denotam
isso tudo de estético e sensibilidade com maior carência.
Chamo
isso de «poesia de decalque». Aquela que se move pelo dado imediato da vida; aquela
que não recria; que não abstrai; sem a mínima obsessão de novidade; aquela nua
de sensibilidade só porque o poeta no momento mais solitário dos seus dias
desenvolve mais o intelecto e atrofia a intuição, sendo a última – na
perspectiva dos 3Is de Osho (Instinto, Intelecto, Intuição)– uma categoria
essencial para a criação artística. São trabalhos crus, arcaicos e prematuros
que nem se aproximam da receita dadaísta no poema de T. Tzara.
«A
forma custa caro, diria Valéry» numa tentativa de acautelar ao escritor de não
ter a pressa de publicar, pois antes tinha que se dar ao cuidado de economizar
a palavra; de ser zeloso com o verbo; de assumir a responsabilidade de uma
civilização literária. Ou seja, «ir longe sem percorrer o distante» disse D.
Bahule. E é a isto que R. Barthes nos arremessa em O Grau Zero da Escrita. O escritor tem que passar a ser um artesão
das Letras «que se encerra num lugar lendário, como um operário que trabalha em
casa, e desbasta, talha, dá polimento e incrusta a sua forma, exactamente como
um lapidário extrai a arte da matéria, passando nesse trabalho horas regulares
de solidão e de esforço»; um escultor que retira a matéria do tronco num canto
solitário para achar o cerne e dar-lhe a forma adequada (trabalhar uma matéria
é, em geral, cortar a parte dela) – é a isso que Barthes chama de «economia da
palavra». Isto dói. Mas estaria eu a pedir muito? É com dolo que raros poetas
da nossa geração conseguem ser «escritor-artesão»: Sangar Okapi, M.P. Bonde,
Jaime Munguambe, Hirondina Joshua,Taruma, Jeconias Mocumbe, e Jeremias Jeremias
(ainda que este último os seus textos se encontrem dispersos em revistas)– são
alguns casos achados de poetas que não padecem de ejaculação precoce.
E não
deixaria de citar alguns indigestos que assolam a prosa (Conto e Romance).
Volvidos longos anos em que o romance e o conto moçambicanos mostravam uma
evolução invejável no mundo literário, estes, nas mãos dos novos escritores
ganham apanágios de uma parábola virada para baixo. Colocam-nos em choque – ainda
que ninguém o diga.
Mas
incomoda-me a parcialidade de críticos como José dos Remédios e Eduardo Quiv,
que após terem lido os escritos de Alerto Bia em O ardina de sapatos gastos, apelidaram de «novo estilo ou nova
tendência literária», talvez movidos pelo espírito de amizade ou do tal dito
acarinhamento dos novos jovens escritores (como sublinha Elísio Miambo). Isto
equivale a aplaudir um tolo que assegura um revólver na mão.
O
conto africano moderno é herança de uma tradição literária e cultural africana
e sempre assumiu, para além de um valor moralizante e didáctico social, também
um sentido comunitário. O sentido comunitário que a literatura africana denota
responde àquilo que alguém como Kwame Anthony Appiah procura despertar sobre o
que vale para um escritor africano entre a sinceridade e a autenticidade; ou
seja, entre o problema individual e o colectivo.
Obviamente,
aqui, a colectividade ganha peso. Alberto Mathe diria «o centro dos
acontecimentos não é o individuo, mas a comunidade no seu todo». E os textos d’O ardina de sapatos gastosao dar costas
a estes elementos essenciais apresentam-se não como uma nova tendência
literária que oscila entre o conto e a crónica, como impiedosamente os críticos
aludidos nos tenderam fazer crer, mas como uma anarquia infundada que não só
destrói a natureza do texto literário africano, como também viola as estruturas
linguísticas basilares ao apresentar um desvio morfossintáctico descuidado.
Tanto
o conto assim como a crónica devem conseguir suscitar com mínimo de meios o
máximo de efeito possível no universo do leitor – e a reflexão é um dos
efeitos.O ardina de sapatos gastos não
se trata de um exercício artístico, mas sim de apontamentos ou tomada de notas,
com única pretensão de brincar com as palavras e com o tempo para espantar a
ociosidade imposta pela pandemia. Tratou-se duma burla aos leitores.
Aos
autores e editores d’O poeta ambulante e
d’O ardina de sapatos gastos é favor que
recolham todos os exemplares vendidos e restituir-se os valores aos leitores e
restando um pouco de consideração suspender-se a respectiva venda.
É
urgente que o autor d’O ardina de sapatos
gastos, aproprie-se da teoria do conto – e A Religiosidade no Conto Moçambicano: Teoria, História e Crítica de
Aberto José Mathe, é uma leitura obrigatória. A leitura de Suleiman Cassamo com
o seu O regresso do morto; de João Albazini
com O livro da dor; dos contos de Mia
Couto e de outros mais contistas, são obras que possam ilustrar com maior rigor
a maneira de trabalhar com o conto.
Mas
aqui se coloca outro problema graúdo – o da leitura. Diferentemente do que o
autor d’O ardina de sapatos gastos em
suas palestras e conversas literárias tem defendido, para o qual o «exercício
de leitura é análogo a um conjunto de meninotes famintos que comem na mesma
gamela» inferindo, com efeito, que ela deve ser feita com maior pressa
possível, a leitura é um exercício solitário – é comer sozinho – para garantir
a degustação; a exploração de cada tom do sabor do prato. Dar-se a saber de
cada ingrediente que participou da confecção do prato; mapear a possível
receita que conferiu a perfeição do mesmo; comparar os sabores com as experiências
anteriores: eis a modalidade de como um escritor e/ou leitor deve encarar a
leitura.
Sobre
a Âncora no Ventre do Tempo de
Fernando Absalão Chaúque: qual é o lugar do Outro numa obra de arte? Que valor uma
obra de arte pode lograr quando ela se nos apresenta como um “manual de
preconceitos”? A catalogação de uma realidade existencial como única
possibilidade de existir é por si só uma negação do Outro; a não assunção da
alteridade; é olhar para o mundo numa única perspectiva. O artista deve
entender que num mundo da diversidade não é destro que os seus actos artístico-discursivos
nos apareçam com um teor de castração do Outro. Tem que entender também que o
Outro é aquele que confere a certeza da nossa existência – existo porque o
Outro existe. E é na relação com o Outro onde se tece a ética (a minha
espontaneidade é impugnada pela presença do Outro) – Emmanuel Lévinas é uma
escola para todos.
A Âncora no Ventre do Tempode além de
apresentar construções elementares e discursos imediatos, distingue-se pela sua
índole castradora; de rejeição do Outro; de não se identificar com a dor do
Outro, como se pode ler no seguinte excerto:
Na manhã de
hoje, Baskeni flagrou-os temperando-se os traseiros. Sim, a se comerem os cus!
Que nojo!! Quem lhes disse que cu é para sexo? Qual é o mel que tem lá entre as
nádegas? A pétala do prazer, o homem só pode achar na ogiva perfeita da mulher.
Não no nyonpfi de um outro homem (…).
Estes têm boas metralhadoras, canhões que toda mulher procura para se deliciar,
mas eles preferem-se um ao outro. Sobem-se profanando a virilidade masculina,
(p. 32).
Numa época em que os génios não
nascem, é urgente que os jovens escritores leiam os clássicos, não naquela
perspectiva alertobiana, mas na perspectiva contrária. O autor d’Âncora
no Ventre do Tempo precisa
voltar para casa e beber da teoria do romance. Uma leitura d’Estética da Criação Verbal de Mikhail
Bakhtin e As Estruturas Narrativas de
TzvetanTodorov pode reduzir alguns vícios superficialmente notórios. Mas antes,
precisa mesmo é de se perguntar se precisa mesmo continuar a escrever e se
morreria caso fosse privado de tal desventura.
Harani MAHALAMBE
Comentários
Enviar um comentário
Edite o seu comentário aqui...