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POR QUE ESCREVER?

 


— Por Ericson Sembua

 


            Há dias, o escritor e historiador Baltazar Gonçalves publicou, na coluna Nossas Letras do jornal GCN, o resultado de uma pesquisa que fez acerca das respostas de autores e autoras consagradas sobre o acto de escrever. Dada sua correspondência com escritores e escritoras de língua portuguesa, recebeu a leitura, análise e respostas do escritor moçambicano Ericson Sembua, ele que tem textos publicados na antologia TANTO MAR ENTRE NÓS: DIÁSPORAS organizada por Baltazar Gonçalves e à venda no site da Editora Kotter. Leia a seguir as palavras de Ericson Sembua.

 

            Allen Ginsberg respondeu que escrevia poesia porque, entre outras coisas, gostava de cantar. Em contrapartida, Manuel Bandeira confessou que fazia versos porque não sabia fazer música. É um caso para se admitir o relativismo no concernente às razões que cada escritor tem para escrever. Algumas razões são influenciadas pela cosmovisão, outras pela tradição cultural vigente, outras ainda pelos influxos menos consideráveis; penso que o que realmente importa à literatura, além da essência do belo, é que a resultância seja benfazeja.

 

            Estimo bastante a resposta da Rachel Queiroz. Não somente porque ela salienta a contingência nas razões para escrever, mas também pelo cerne de sua resposta, que deve constituir um legado. Segue-se singelo e faustoso quando, no escoar de sua resposta, ela diz que escreve para dar testemunho do seu tempo, de sua gente e, principalmente, de si mesma. Essa concepção fez-me pensar em certas entidades que, cônscios ou incônscios, ocupam-se muito seriamente em escrever a cultura e o tempo de outrem. Outros, que vão mais além, chegam a abdicar de sua própria identidade cultural e perdem-se no tempo. É um vício muito sério, embora antigo. Penso que é necessário ter uma razão absolutamente indispensável para que um escritor brasileiro escreva sobre o Halloween, posto que tem à sua disposição o Saci Pererê. E urge também uma razão absolutamente necessária para que um escritor moçambicano hodierno retrate a idade colonial, se bem que esta já nos foi testemunhada por literatas daquela idade, sem contar que temos hoje o advento do terrorismo no norte do país, que também deve ser abordado em literatura e história. Ora, se um escritor escreve própria e seriamente a cultura e o tempo alheios, quem escreverá por ele o que a ele cabe? Numa concepção peculiar, só pode ser prudente escrever a cultura de outrem e o tempo alheio quando se tem a moderação afirmada nos punhos, o equilíbrio a exsudar no vértice dos dedos e a intrínseca cultura a estimular o espírito criativo. Ademais, urge repensar a literatura, não apenas em matérias de gênero e de linguagem, mas no teor temático e na moldura temporal também.

 


            Em conformidade com as respostas apresentadas por Cecília Meireles, Júlio Cortázar e Moacyr Scliar, pode-se afirmar que a conexão diversa que cada um deles experimentou, na infância, com a literatura, serviu-lhes de estímulo para persistir em engendrar exercícios literários com mais frequência e solenidade. Todos estes começaram a escrever porque liam. Eis o salutífero corolário de ter livros em casa e de exortar a cultura de leitura às crianças; é, pois, a partir do exercício da leitura que as crianças aprendem e apreendem a vida. Penso que não se pode negar o enorme valor que têm esses três escritores para a cultura de seus respectivos países e para a literatura universal. É necessário enfatizar também que boa parte dessa glória reunida foi possível graças ao exercício da leitura. Eu cá creio que ainda é possível criar grandes nomes que ascendam o valor da cultura; os exemplos estão ao nosso alcance, cabe a nós seguí-los.

 

            Penso que esta resposta dada por Paulo Francis ["Escrevo romances para me perpetuar, para ter fama, glória, dinheiro, amor, essas coisas comezinhas da vida."] é a realidade abstrusa de alguns autores hodiernos, principalmente dos neófitos e/ou aspirantes. Entretanto, não considero que seja um propósito próprio de um verdadeiro literata. Confesso, porém, que não sei em que contexto Paulo Francis aplicou aquela resposta, pode ser que o tenha dito em tom de sarcasmo, justamente para exprobar os que seguem essa linha.

 


            Algo me afaga a alma na resposta dada por João Cabral de Melo Neto. Uma ideia que subscrevo porque me identifica. É quando ele diz assim: "Tenho a impressão de que a gente escreve por dois motivos. Ou por excesso de ser — é o tipo do escritor transbordante, como a maioria dos escritores brasileiros; é uma atitude completamente romântica — ou por falta de ser. Eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar.". Eu cá partilho da mesma ideia. Desde que ousei escrever, calculei esse raciocínio. Agrada-me saber que ando muito bem acompanhado nessa linha de pensamento.

 

            É-me intrigante quando, no exercício de sua resposta, Carlos Drummond de Andrade, argumenta, "sem exagero, sem fazer fita", que não é propriamente um escritor. Penso que esta é uma atitude emblemática de perfeccionistas e estetas. Em diversas formas de expressão artística, inclusive na literatura, toda a inspiração, toda a transpiração, toda a aspiração e toda a respiração têm um único propósito — alcançar o clímax da essência do belo. Ora, o clímax do belo é absolutamente intáctil. É por isso que considero todo e qualquer exercício artístico como um contínuo tentame. E esse é um fenômeno agradável e imprescindível; penso que, se fosse possível alcançar o clímax da essência do belo, não haveria mais razão para prosseguir com as tentativas —haveria, na arte, uma espécie de armagedom.

 


            Eu já tinha dito, no início dessa mensagem, que essa era uma pergunta muito difícil; e, se ela fosse dirigida a mim, eu gostaria de responder como Fernando Sabino, cuja reação passo a transcrever:  "Tenho a impressão de que se eu soubesse responder a essa pergunta deixaria de ser escritor. Não haveria condição. Não saberia dizer, não. Está além da minha compreensão. Esta pergunta é tão grave como se perguntassem: ‘Por que vive? Por que ama? Por que morre?’. Talvez eu escreva para atender a essas três presenças que são as únicas que existem na vida de um homem. Não sei por que escrevo. Eu nasci, virei homem e vou morrer.". Essa talvez seja a resposta mais sincera e genuína dentre as que mais estimei.

 

            Confesso que não soube compreender essencialmente a resposta de Gabriel Garcia Márquez — "[Escrevo] para que meus amigos me amem mais"? Parece ter algum sentido, mas não consigo harmonizá-la em um quadro lógico. Se eu soubesse em que contexto ele o disse, talvez pudesse reavaliar a resposta.

 

            José Saramago respondeu a pergunta revelando que escrevia porque não queria morrer. Fernando pessoa assumiu que escrevia para salvar a alma. Augusto dos Anjos, em sua resposta, admitiu que escrevia para entreter o espírito. Acrescento também Anne Frank que, em seu Diário, revelou que escreve para aliviar suas dores. Convoco também Emil Cioran que, em um de seus Cadernos de 1957 à 1972, apontou que escreve para sobreviver. Todas as outras respostas fazem uma oblíqua referência a vida. Penso que a arte — neste caso a de escrever — tem tudo a ver com a vida. Escreve-se para sobreviver a vida. Escreve-se para sustentar a vida. Escreve-se para amar a vida. Escreve-se para viver. E o corolário de toda e qualquer criação artística é um perfeito plágio da vida.

 


            Penso que a resposta sintética dada por William Faulkner — uma frase de apenas quatro palavras compostas por sete sílabas — pode servir como a súmula de todas as outras. POR QUE ESCREVER? — "Para ganhar a vida".

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