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Algures no céu, despois do “calvário e cruz”



Aos meus amigos da boémia (J.F, H.M, J.C, M.C,) e à nossa única mulher Brígida



A Brígida, essa mulher de modos muito reservados, trouxe-nos as garrafas de cerveja deitadas na bandeja. Despertou-as à mão, uma a uma, como uma mãe que arranca o filho do sono. Em pé, no centro da mesa amarela de plástico, as garrafas pareciam freiras surpreendidas por um anjo a cochichar sobre a ousadia de judas.

Era já noite. 

As horas corriam no pêndulo. As ruas adormeciam. Nenhum cão, nenhum larápio, nenhuma alma ou doido a restolhar descartáveis no contentor enferrujado, mas alguns carros sacolejando no asfalto com hematomas. 

Estávamos sentados numa esplanada recém-erguida, o capim ainda fresco, a cheirar a seco e a húmus. De quê conversam os artesãos das palavras, essa duras pedras com a profundidade de poço, quando se encontram? Talvez falem de tudo e menos construir um castelo de silêncio. 

O H.M ajustou os óculos no rosto e agarrou a quinta, a sexta ou sétima garrafa com o anzol das mãos; roscou a carica com um pedaço de guardanapo. As caricas pareciam pétalas caídas ao chão. Alguns fragmentos da música rasgavam a distância do quintal, invadiam o fundo das nossas cabeças, como uma lâmina no peito.

Bebíamos…

A luz vinha da lâmpada suspensa na varanda de um corredor de quartos de pensão, onde idas e saídas de pessoas se observavam com frequência depois do amor. Por vezes ouvia-se rasgos de água a cair nas lajes do banheiro, onde se lavavam cos corpos depois do amor, depois do calvário e a cruz!

O amor lava-se. É nauseento!

A Brígida de tudo que se possa ler nos seus gestos é o de passar o pano sobre a mesa amarela a que nos sentávamos e sacar o suor das garrafas. É dessa mulher que o J.F sempre duplicava o sorriso nos lábios, quando ela se aproximava sorrateira para corrigir o vazio das garrafas, corrigir a garganta da sede.

O luar tímido naufragava em ondas de nuvens. Nuvens de chuva. Nuvens que pesavam o céu. As saídas frequentes da mesa era por causa das bexigas que ameaçavam explodir, mas também era nas saídas que lembrávamos a Brígida de fazer a rotação. 

O céu é um paraíso. O umbigo do silêncio provem do céu.

Pedimos ovos…

O J.M passeou a ponta dos dedos no rosto, a palma da mão frigida como a pele da pedra. Embrulhou as palavras na boca para devolver as palavras: a Sónia é um amor falhado. 

Soltamos umas gargalhadas como corvos, o corpo ferido nas lajes, a corvejar. Quem é a Sónia ressaltara a pergunta M.F como se o amor não fosse uma ferida viva no peito. 

Trouxeram-nos dois favos de ovos, e chocamo-las sobre a mesa como galinhas putas, essas putas somos nós meus amigos. Este texto não é sobre ninguém, senão nós algures no céu, depois do “calvário e a cruz”. 


Alerto Bia, algures no céu, depois de "calvário e a cruz" 26|março|2022

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